11 fevereiro 2005

Um Exemplo a Seguir



A actividade permanente do Palácio da Bolsa, constitui uma nota de alento numa cidade que se dá ao luxo de manter inúmeros edifícios notáveis devolutos.

Olhemos o caso do Palácio do Freixo, em cuja recuperação foram gastos 10 milhões de euros. Encerrado há dois anos, só agora se lhe vislumbrou uma utilização concreta como pousada, entretanto chumbada na Assembleia Municipal.

O Edifício Transparente custou 5 milhões de euros. Polémica à parte, o imóvel constitui uma varanda privilegiada sobre o mar e o Parque da Cidade. O préstimo que lhe encontraram foi o de suporte decadente para painéis publicitários.

A Casa dos 24 está devoluta desde 2002. Construída junto à Sé, sobre as ruínas daquela que terá sido a primeira casa municipal portuense, foi projectada para albergar um centro de documentação de seis cidades históricas. Ontem ficou a saber-se que os 750 mil euros de investimento, continuarão sem qualquer serventia, para além de miradouro da cidade.

E muitos outros como a Casa de Pernambuco, junto ao Teatro do Campo Alegre, destinada a aprofundar as relações luso-brasileiras; a Casa do Cinema que supostamente alojaria o espólio de Manuel de Oliveira; o edifício da Praça D. João I, que serviria como quiosque de divulgação cultural, o café existente na base da antiga Ponte Pênsil e até o Cinema Batalha, que sofreu obras de beneficiação para... continuar encerrado.



O Palácio da Bolsa, para além de ser o monumento mais visitado do Porto, com cerca de 200 mil entradas anuais, realiza regularmente concertos, palestras, congressos, conferências, mostras comerciais, leilões, passagens de modelos, enfim, um sem número de eventos que são de saudar, porque contrariam o imobilismo que se instalou na cidade.

04 fevereiro 2005

Crepuscular



Crepuscular

A incerteza cai com a tarde
no limite da praia. Um pássaro
apanhou-a, como se fosse
um peixe, e sobrevoa as dunas
levando-a no bico. O
seu desenho é nítido, sem
as sombras da dúvida ou
as manchas indecisas da
angústia. Termina com a
interrogação, os traços do fim,
o recorte branco de ondas
na maré baixa. Subo a estrofe
até apanhar esse pássaro
com o verso, prendo-o à frase,
para que as suas asas deixem
de bater e o bico se abra. Então,
a incerteza cai-me na página, e
arrasta-se pelo poema, até
me escorrer pelos dedos para
dentro da própria alma.

Nuno Júdice

02 fevereiro 2005

Saudação a Hélios




[Edifício que durante dezenas de anos alojou o Diário de Notícias, na Praça da Liberdade. Sugerido por Vera Diana]

Ra para os egípcios, Mitra para os persas, Brahma para os hindus, Adonai para os fenícios e Hélios para os gregos, o Sol foi sempre considerado o mais importante dos deuses.
Pela manhã, depois da Aurora descerrar as pálpebras do dia e soltar as brisas matinais, Hélios sai do oriente, percorrendo o céu num carro puxado por quatro majestosos cavalos brancos - o Oriente, o Brilho, a Chama e o Fogo - que exalam labaredas pelas narinas. Sobe até ao ponto mais alto do meio-dia e então começa a descer para ocidente, até mergulhar no oceano ou descansar atrás das montanhas...

31 janeiro 2005

Encantamento Nocturno em Contra-Luz, na Rotunda



Uma piscar de olho aos autores do Dias com Árvores, que viram o seu pedido de classificação de interesse público, de 11 conjuntos arbóreos no Porto, reconhecido pela Direcção-Geral das Florestas e publicado no Diário da República. Eles dizem que estão «contentes que nem cucos... em cima das árvores». Quanto a nós, estamos todos de parabéns.

28 janeiro 2005

Testemunha do Tempo



Do alto de um frontão triangular, o busto de uma figura feminina com o barrete frígio, símbolo republicano, domina quem passa numa rua com nome fidalgo, o do Morgado de Mateus.

Certamente foi colocada naquela posição dominante, pelo dono da casa, para celebrar a vitória do ideal republicano sobre a monarquia em 1910. Imóvel, sorridente e em silêncio acabou por presenciar a história do século XX.

Desiludiu-se com os desvarios da 1ª República e os sucessivos levantamentos populares e militares. Assistiu à desastrosa participação portuguesa na 1ª Guerra Mundial; ao surto de gripe pneumónica, que matou 100 000 pessoas em 1918; à primeira travessia aérea do Atlântico Sul e à generalização do automóvel e da camionagem nos anos 20; ao surgimento do cinema, o mudo primeiro e mais tarde, já no sossego tumular da ditadura, o sonoro. «Onde vais Isidoro? Vou ao sonoro!» - era um dito popular nos anos 30. Ouviu as primeiras emissões regulares da Rádio. Atravessou o racionamento na II Guerra Mundial, porque as armas do conflito só nos tocaram lá no fim do Império, em Timor. Admirou-se com o advento da televisão e exultou com o regresso da República em Abril de 1974.

Testemunha do tempo, contempla hoje, impávida e serena, a chegada da sociedade da informação e do saber, sem se perturbar com a crise de valores orquestrada pelo cortejo mercantil neoliberal.

24 janeiro 2005

Passeio Alegre



Passeio Alegre

Chegaram tarde à minha vida
as palmeiras. Em Marraquexe vi uma
que Ulisses teria comparado
a Nausica, mas só
no jardim do Passeio Alegre
comecei a amá-las. São altas
como os marinheiros de Homero.
Diante do mar desafiam os ventos
vindos do norte e do sul,
do leste e do oeste,
para as dobrar pela cintura.
Invulneráveis - assim nuas.

Eugénio de Andrade

21 janeiro 2005

Abraçada à noite,
a névoa desce sobre a terra



Névoa

A Albano Nogueira


Abraçada à noite,
a névoa desce sobre a terra.

Imprecisamente,
como se a névoa fosse dos meus olhos,
vejo o casario e as luzes do outro lado do rio.
Mais à direita, ao longe,
são já da névoa a praia, o mar.
Ouve-se apenas o ronco do farol
- um som molhado.
Para o lado dos pinhais,
anda a bruma a fazer medo
e a pôr mais pressa nos passos de quem foge.

Não há luar, não há estrelas.
De novo olho par o rio.
Não sei se o vejo:
anda a névoa, já, com ele,
e os meus olhos não dizem o que é bruma, o que é rio.
E ela não pára,
avança ao meu encontro.

Cerca-me.
E eu tenho, só,
orvalho nas árvores do jardim,
gotas de água que se partem na alameda,
o ar húmido que me trespassa,
o molhado ronco do farol,
os cabelos encharcados
e pensamentos de névoa.

Alberto de Serpa