03 maio 2005

O Porto com paixão

Rendo-me. Morro de amor pelo Porto. Assim que desembarco naquele cinza azulado com cabelos de nevoeiro suspensos e engulo o cheiro do Douro, sinto-me quase pura.




O Porto tem mistérios que a emoção apanha e doura e transforma e eterniza. Clássico e íntimo, distante e sereno, arrogante e terno, soberbo e entristecido, atira-me um frio matinal e uma Foz opulenta. O Porto veste-se diferente. Ousado e vanguardista, formal e de linhas discretas, desce Santa Catarina como se fosse para o jazz e enquanto o café arrefece e o cigarro descai, olha displicentemente atento para a miúda integral e leite desnatado.



O Majestic vai envelhecendo ao ritmo do cansaço, as paredes descascam-se sem pudor e sempre ao velho poeta sucede-se um velho pintor, e lá fora a rua apetece. Com paixão desvairada mordo os bombons da Cunha, doces e intensos, especiais para recordar, para amar com a sôfrega paixão de quem deixa atrás uma cama aberta e um barco fundeado no Castelo do Queijo.



Estar no Porto é marcar encontro com Chagall e insistir no mistério do azul profundo com um sorriso sépia. É desejar uma asa e ter um sussurro apaixonado. É mergulhar numa arquitectura europeia e tropeçar em Mozart e derrapar num silêncio mordaz de Agustina, e perder o pé numa tela de Resende e ganhar a voz com Eugénio. O Porto de sombras. O Porto de sol. O Porto a trabalhar ao ritmo dos comboios. As castanhas no banco da Avenida, os livros, os barcos, a Ribeira, os putos, o vento e a inesquecível música de um violino despenhado.



Quem chega ao Porto chega sempre a um lugar diferente. Será do nevoeiro, será da claridade das casas austeras, dos jardins adocicados, da iluminação, das ruas apertadas, será da sombra do rio ao fundo dos hotéis cheios de gente, sei lá, deve ser de tanta beleza indizível, irretratável, mas também pode ser da memória do teu corpo que me persegue como uma onda e me galopa. E depois até a chuva é diferente. Escorrega sobre as pedras, desliza sobre o parque, enche de cheiro inglês o bairro da Boavista, amortece suavemente o Passeio Alegre, embala-nos o orgulho de uma cidade masculina.



O Porto vibra debaixo dos plátanos e das tílias, descansa sobre as estátuas, sonha na Arca de Água e consome nos centros comerciais e na tradicional 31 de Janeiro a vaidade urbana. São atmosferas densas de cor e forma, de desejos tórridos de contenção elitista, de segredos demorados e chistosos. O Porto é um tesouro que se fixa e que apetece sempre mais. Outra noite no Aniki-Bobó, outra conversa húmida no Luís Armastrondo, a mesmíssima música do rio no corredor da Ribeira.



O Porto com paixão. No Porto me perdi a meio de uma tarde iluminada pela geometria dos teus dentes. Sedento de moliceiros, perdido de saudade medieval, envolto de mistérios barrocos, no Porto me vejo fértil e bem português, rico e altivo, mulher de palavra quente e chã, corpo musculoso, visões antigas de uma verticalidade acintosa. Rude e compacto, áspero, mulher acesa, homem voluntarioso. Todos os ângulos são possíveis para te amar, todas as paisagens no trânsito caótico, na margem de Gaia, no sobressalto das águas picadas pelo vento do Moledo, no sossego dos jardins de S. Lázaro, no mercado, no táxi na Marginal, nos lençóis do Meridien. Ou seja, no Porto todo o amor é de paixão secreta e voluptuosa, às vezes rubra outras azul-escuro, mas sempre paixão de luz contra o nevoeiro. Porque o Porto não se esquece aqui fica em posfácio o recado possível. Angustia-me. Arruivece-me. Inaugura-me outra ponte. Devolve-me o teu momento de paixão.

Mendes Ferreira


29 abril 2005

A cidade do deserto



Como instalar um cenário de ficção no Cabedelo

1 - Peça um céu carregado de nuvens.
2 - Monte um estradão coberto de pó e areia.
3 - Invoque uma leve brisa de vento oeste (para animar o pó).
4 - Aguarde que o Sol se decida a espreitar.

Como fundo musical, trauteie o refrão de «O Porto aqui tão perto», de Sérgio Godinho:

Ai eu estive quase morto
no deserto
e o Porto
aqui tão perto
...

Impressões de literatas, viandantes e memorialistas # 5



«O Porto tem uma tonalidade sua e um "clima" próprio, uma "patine" que não é meridional. A cor amortecida, tamizada de alguns dos seus bairros, a sua luz muitas vezes velada pelo nevoeiro, o seu ambiente evocativo, dão-lhe expressão nostálgica de cidade nórdica, como Bruges e Amesterdão. Isso dá-lhe uma alma e uma expressão singular»

Roberto Nobre

27 abril 2005

Cores do pôr-do-sol...



... nas clarabóias da Bolsa ...



... nas fachadas do Infante ...



... e nos plátanos da Cordoaria.

22 abril 2005

No Carmo



A silhueta da Igreja do Carmo. Um típico exemplar do barroco portuense.

21 abril 2005

Na Praça da Batalha

O topónimo Batalha terá tido origem num combate aqui travado entre os habitantes de Portucale e o mouro Abu-Amir, cognominado Almansor. Verdade ou não, o local viria a fazer jus ao nome que ostenta já em pleno século XX.



Em Fevereiro de 1919, um esquadrão da Guarda Real que passou para o lado republicano, derrotou nesta praça, sob o comando do capitão Sarmento Pimentel, a Junta Governativa de Paiva Couceiro, pondo fim à chamada Monarquia do Norte.



Uma nova revolta, muito mais sangrenta, viria a ocorrer neste lugar público em 3 de Fevereiro de 1927. Desta vez contra a Ditadura Militar, surgida na sequência do movimento de 28 de Maio de 1926 que, como se sabe, levou Salazar ao poder.

Um dos protagonistas, o tenente Diogo Martinez de Lima, evocava-a assim (1) em 1984:
« (...) as forças do Caçadores 9 ao subirem para a Batalha dividiram-se em três grupos, subindo como disse, pela 31 de Janeiro um deles e os outros por Passos Manuel e pela Rua do Loureiro. Na Batalha, os tiros do tenente provocaram mais tiroteio, houve feridos. Apareceu ainda mais povo, ouviram-se os primeiros vivas à República e o ambiente tornou-se de guerra civil latente.
(...) Eu comandava três trincheiras: a chamada "trincheira da morte", que era Santa Catarina - 31 de Janeiro, em frente à Janota; e Batalha, propriamente Santa Catarina; e outra na Rua de Santo Ildefonso, junto do Bocage, e comandei uma metralhadora pesada no meio do Largo dos Poveiros.
(...) Quando foi a carga de cavalaria, ao sermos surpreendidos, virámos todas as posições para a Batalha (...) A carga apanhou-nos completamente desprevenidos, avançaram à vontade e a minha tropa supôs inicialmente que eram nossos e deixou-os avançar. Numa fracção de segundos apercebemo-nos da verdade e, como disse, voltámos às posições e contra-atacámos.
(...) Na noite de 4 para 5 é que temos a grande batalha, com metralhadoras, artilharia - uma noite muito pior do que muitas que eu tive em plena Grande Guerra! Incidia exactamente sobre a Praça da Batalha. O fulcro da revolta era lá. De resto tínhamos mais umas forças distribuídas pela cidade. (...) Lisboa ia protelando a saída e nós ali, na Praça da Batalha. (...) Passado o tempo que entendemos bastante fomos para nova reunião de oficias (...) [e] entendemos pedir a rendição.»

(1) Evocação do Tenente Diogo Martinez de Lima, no Diário de Notícias de 29-01-1984, in «A Sala dos Espelhos» de José Viale Moutinho (ed. Lello & Irmão, Porto, 1993)

18 abril 2005

Portucale castrum novum



«O Porto nasceu das cinzas fumegantes a que o mouro el-Mansor havia reduzido a mesquinha população da beira-rio. E depois, quando pôde, marinhou à eminência da Pena Ventosa, fez-se cidadela, Portucale castrum novum, armou em bispado e feudo, e gastou a juventude a brigar com o senhor bispo, dono pouco amável do burgo e dos burgueses. Estes, emancipando-se afinal, apesar das censuras eclesiásticas e dos anátemas, davam por sua vez ao duro amo ruins bocados. Assim levou o Porto a sua vida entortinhada e de má medrança, desde os inícios da monarquia. O caldo negro espartano enrijou-o precocemente para a luta das imunidades do seu lar.»

João de Oliveira Ramos