04 outubro 2005

A ponte que Eiffel construiu



O mito que atribui a autoria do projecto da Ponte Maria Pia a Gustave Eiffel, sofreu recentemente um novo revés. Desta vez foi uma voz autorizada a repor verdade, o historiador Lopes Cordeiro que, por ocasião do lançamento do livro «Ponte Maria Pia - a obra-prima de Seyrig», de que é co-autor, afirmou, segundo o Jornal de Notícias:

«O arco da ponte é que foi revolucionário e ele deve-se aos cálculos de Seyrig. Todo o resto da Maria Pia foi construído em série e aplicado noutras pontes metálicas. Por isso a ponte é de Théophile Seyrig».

Esta declaração levou-me a procurar uma revista antiga de trinta anos, adquirida a um alfarrabista de Córdoba, onde Mercedes López García, professora de Estética da Engenharia, aborda a obra e a personalidade do autor da famosa torre de Paris, num artigo intitulado «Eiffel, Mito y Realidad».

O texto não pretende desqualificar Eiffel, mas sim colocá-lo no lugar que lhe pertence: o de um excelente construtor e empresário, no sentido mais moderno da palavra. Eiffel sabia cercar-se de brilhantes engenheiros que mantinha na sombra por razões promocionais da empresa que tinha o seu nome. O seu mérito não residia na criação, mas sim na gestão que imprimia às construções e na precisão da execução, graças à técnica de pré-fabricação em estaleiro, tão avançada para a época.



Em 1868, Eiffel conhece Théophile Seyrig, um brilhante engenheiro, com quem constitui uma sociedade em condições altamente favoráveis para si. Quando Seyrig se apercebe das condições desvantajosas em que trabalhava propõe alterar o contrato. Eiffel recusa e rescinde o acordo nove anos antes do fim do prazo contratual. Entretanto Seyrig havia projectado a Ponte Maria Pia, que a empresa Eiffel construiu num curto prazo de tempo. Seyrig vai então trabalhar para a empresa Willebroeck que, com um projecto seu, ganha a Eiffel o concurso internacional para a construção da Ponte Luís I, também no Porto.

O grande êxito de Eiffel, aquele que o tornou popular a nível internacional, foi a torre que tem o seu em Paris. A ideia da torre, contudo, foi de dois dos seus colaboradores: Maurice Koechlin e Emile Nouguier. Eiffel regista a patente em nome dos três e passado algum tempo apressa-se a comprá-la aos seus colaboradores, ficando como único proprietário. Mais tarde assinará o acordo para construção da torre, não no nome da empresa, mas em seu nome pessoal. Construirá a gigantesca estrutura no prazo de 26 meses, sem acidentes mortais. Um verdadeiro sucesso.

No currículo da casa Eiffel constam inúmeras obras numa grande dispersão geográfica. Só na Ásia montou quatro mil pontes pré-fabricadas. A estrutura da Estátua da Liberdade também foi por si construída.

O hábito de assinar apenas contratos que lhe fossem extremamente vantajosos, deixará uma mancha no seu orgulho. O acordo para construção de comportas no canal do Panamá, foi redigido em tais termos que Eiffel acaba em tribunal no ano de 1892, acusado de fraude, de que foi absolvido.

Alguns meses depois retira-se, dedicando-se durante 28 anos à investigação científica.

14 setembro 2005

Tempo de pousio



Não é por ócio, como a imagem sugere, mas por outras ocupações que não poderei actualizar A Cidade Surpreendente nas próximas três semanas. Regressarei ao blogue no dia 4 de Outubro.

09 setembro 2005

08 setembro 2005

07 setembro 2005



Nos próximos dias andaremos por aqui, a espreitar esta obra de um visionário italiano que há 280 anos adoptou o Porto como cidade para viver e trabalhar.

Para saber mais sobre este paradigma da audácia barroca, como alguém já designou a Torre dos Clérigos, aconselho a consulta da página pessoal de António Amen, que contém cerca de seis dezenas de fotografias e um texto bastante completo, ou o sítio Porto XXI.

05 setembro 2005

No Infante



No pedestal do monumento ao Infante D. Henrique uma figura feminina, aqui despida da alegoria da Fé dos Descobrimentos, parece saudar as pessoas tranquilamente sentadas, no final de uma tarde quente de Agosto. Ao fundo o Palácio da Bolsa.

30 agosto 2005

Actualizada a Arquitectura do Rabelo, com a III e última parte.



Rabelos no Douro, fotografia de Emílio Biel, 1900.

25 agosto 2005

Arquitectura do Rabelo

A Arquitectura do Rabelo é o título de um estudo do prof. arquitecto Octávio Lixa Filgueiras, que serviu como roteiro para um filme documentário produzido por José Monteiro e realizado por Vítor Bilhete. Este documentário correspondeu talvez à última oportunidade de fixar imagens para o futuro, de uma tradição hoje perdida: a construção de um barco rabelo por um dos últimos mestres calafates do rio, já desaparecido, com alguns artífices que com os mestres trabalharam.

O processo decorreu em absoluto respeito pelo método nórdico de carpintaria naval, ou seja a formação do casco antes da montagem das cavernas. Sem máquinas, apenas com o esforço humano, e sem moldes, as formas foram obtidas a partir de medidas básicas tradicionais, o gosto do artista e a prática de muitas gerações.

As filmagens decorreram entre Junho e Agosto de 1991 em vídeo e em película de 35mm. Infelizmente não houve suporte financeiro para a montagem da versão cinematográfica, que se mantém em negativo.
A versão DVD pode ser adquirida na Sinalvídeo, a quem pertencem os direitos das fotografias aqui exibidas, por correio electrónico para: correio@sinalvideo.pt .

Comecemos então pela apresentação dos «artistas-artesãos-figurantes» como lhes chamou Lixa Filgueiras, autor do guião aqui adaptado livremente.



0 mestre Arnaldo Pereira, então com 80 anos, natural de Avintes, construtor de barcos valboeiros utilizados na pesca e transporte no troço final do rio Douro;

Júlio Pereira, natural de Avintes, era o mais novo, com 59 anos, filho do grande construtor Alfredo Francisco, irmão do mestre Arnaldo e de profissão carpinteiro de valboeiros e barcos de pá;

Manuel Monteiro, nascido em Bitetos, então com 71 anos, filho de João Rouquinho, célebre arrais do Vinho do Porto, e ele próprio marinheiro de barcos rabelos e barquinhas;

Miguel da Silva, de Santiago, Melres, tinha 62 anos; antigo marinheiro e pescador do rio, além de carpinteirar foi o cozinheiro deste grupo;

Arnaldo Vieira, da praia da Areja, com 60 anos, arrais de rabões, barqueiro e pescador do rio funcionou como ajudante do mestre.



O local escolhido para a construção do barco foi o areio da Lomba, a poucos quilómetros do Porto, devido à importância do trabalho se realizar num espaço aberto e amplo, permitindo o acerto a olho do apuramento das formas do casco e a fruição da própria vida do rio.

Geralmente não havia estaleiros fixos. Os barcos construíam-se nas praias junto às povoações dos clientes que se entendiam com os mestres acordando as condições: o tipo e o tamanho do barco medido em pipas; à jorna ou por ajuste de preço; com ou sem fornecimento de materiais ou de comida.



Se o mestre era de fora e trazia alguns ajudantes, montavam uma barraca onde se instalavam. A comida era cozinhada no próprio local da obra.



Contratada a obra por ajuste de preço, o mestre Arnaldo escolheu as árvores que lhe convinham para a madeira necessária.



Inicia-se a construção do rabelo pelo fundo chato - o sagro, estrado lenticular alongado constituído por número impar de pranchões de 4 cm de espessura. As tábuas pregam umas às outras, de encosto, de modo a que o fundo seja autêntico fundo de prato, ao contrário do dos barcos do troço final do rio, cujos fundos são de tábua trincada.

Passada uma corda a meio do estrado donde sairá o sagro, marcam-se os terços - na verdade uma divisão em quatro partes iguais - e nessas marcas estabelecem-se as larguras simetricamente, com a ajuda de um compasso ou dum sarrafo.



Estas marcações e o contorno do sagro são feitas com a linha batida. A linha é embebida em água e impregnada com pó de cortiça queimada, permitindo a marcação directa. É de salientar a perícia com que o mestre consegue realizar alinhamentos curvos por este processo.



Depois de serrado o contorno do sagro e feito um primeiro solinhado - corte oblíquo no rebordo exterior - pregam-se as travessas que o mantêm solidário.



Começam então a cravar as estacas do picadeiro. 0 picadeiro é formado por uma série de estacas cravadas no chão e acertadas em altura de modo a que o sagro apresente o perfil desejado.



0 sagro acaba por ser transportado para cima do picadeiro. Em caso de necessidade usavam-se pedras ou sacos de areia para o sujeitar ao perfil definido pelas estacas.



Segue-se o traçado - batendo a linha -,feitura e montagem das oucas, as peças de reforço interior, da proa e da popa. A sua colocação nas extremidades do sagro obriga a várias verificações: as alturas são tomadas nos extremos do sagro, para as linhas estendidas dos terços aos extremos dos bicos; o acerto a olho e de longe do perfil do conjunto do sagro mais oucas, ou seja o próprio perfil do barco; o alinhamento e acerto no plano vertical, a partir da linha estendida de proa à popa, de onde se tiram os prumos. Assim, as oucas ficam mantidas na devida posição, com as estacas sustidas por pernas.



0 sagro, consolidado com travessas de reforço provisórias, vai começar a ser urdido. Urdir o barco é vesti-lo com o tabuado dos costados. As primeiras tábuas são as biqueiras, uma a cada bordo - peças triangulares a formar o rodo, à proa, abraçam a ouca pelo exterior e terminam no terço de vante.
Repare-se no ajuste das tábuas que têm que ficar empenadas, tomando a forma com a ajuda de paus que funcionam como alavancas.



A própria configuração da parte superior das biqueiras é acertada no sítio, batendo-se a linha.
As biqueiras sobrepõem-se ao solinho - corte oblíquo no rebordo exterior - do sagro e são por sua vez solinhadas para receberem a primeira fiada corrida, também chamada primeiro solinho. 0 primeiro solinho é constituído por três peças a cada borda.
Monta-se a primeira à proa, segue-se a de ré e finaliza-se com a do meio, que remata o conjunto.



As fiadas corridas - o primeiro solinho, o segundo solinho e as corridas - não são inteiriças. As peças que as constituem ficam ligadas por uniões de escarva lavada contrafiadas para dar mais segurança aos costados.
É sempre o mesmo sistema: tábua a um bordo, tábua a outro, borda trincada, emendas com uniões de escarva, acerto à linha do bordo superior de cada fiada, solinhados, etc.



A última fiada, a faísca, não é completa, porque a curva da boca em perfil permite que vá de fora a fora.



Urdido o barco, isto é, modelado o casco e mantida a sua forma por estacas exteriores e travessas interiores, passa-se à operação seguinte: a de acavernar.



Obviamente tem de marcar-se primeiro a localização das cavernas. Parear o sagro chama-se à divisão do sagro em partes iguais, feita através do seu eixo longitudinal e correspondente ao espaçamento das cavernas. A primeira fiada de pipas nelas assenta directamente.
Compreende-se por isso a importância desta fase. Dela depende a boa arrumação da carga, a própria lotação do barco. Daí a palavra rumo, que corresponde ao comprimento de uma pipa medida. De facto ao disporem-se as pipas longitudinalmente, tampo contra tampo, cada uma deve assentar em duas cavernas sucessivas, sobrando para cada lado o espaço de um quarto de pipa igual a meio casal, sendo o casal o espaço entre cavernas correspondente a meia pipa. Este era o sistema tradicional dos barcos grandes que podiam transportar oitenta pipas em quatro camadas.



Não há paus que as façam inteiras, às cavernas. Nos barcos antigos, uma pernada em L, a caverna mestra, era completada com o pegão, unido de aparo e cintado com arco de pipa. Daí o assentamento alternando os pegões a uma e outra borda do barco. Como vemos neste caso a construção foi-se aligeirando; cada caverna tem um pegão a cada lado o que torna mais frágil a estrutura. 0 acerto das cavernas e pegões é feito directamente no casco.



Após a colocação destes reforços transversais interiores passam a tratar dos reforços de bordadura, ou seja das guarnições. A borda é cintada por fora com os verdugos, terminados à proa e à ré pelos curvatões, e no interior com as dragas. Muitas vezes usavam o fogo para encurvar estas pecas.



Interiormente as dragas inteiriças, ficam sujeitas às estameiras - cavernas especiais mais altas e reforçadas - e são presas solidariamente aos verdugos por meio de tornos de madeira, feitos no local.
Os tornos saem de pedaços de carvalho, cortados a machado e afeiçoados a enxó. Introduzidos nos orifícios, abertos com o trado de fora a fora, isto é abarcando os verdugos, as cavernas e a própria draga. Apertados a malho, ficam travados com as cunhas, nos extremos mais afilados, cravadas de fora para dentro.



0 coqueiro - o coberto à ré - depois de pronto sobrepõe-se parcialmente a um estrado - a chileira de ré - onde a tripulação dormia e cujo espaço interior constituía a despensa de bordo, e por isso era tapada à frente.



Enquanto no barco se acaba a chileira de ré, cá fora tratam de afeiçoar a chumaceira - um cepo de freixo ou sobreiro - onde trabalhará a espadela - o remo de governo do barco. Acabada essa peça, ela é montada de encaixe na popa, sobre a ouca.



Observa-se igualmente a pré-montagem dos escamões, os pilares das apègadas - a plataforma elevada de acesso à espadela - e a preparação da carlinga, onde entrará, na respectiva pia, o pé do mastro.



E já se começa a preparar a praia para tombar o barco. Este é aliviado de todas as peças móveis. A operação de tombar é feita com a ajuda de bois que vão accionar as jangadas de polés de duas rodas. Os cabos destas polés são passados do barco, isto é das dragas, para uma estacada aonde se orde o aparelho de forca.



A operação de tombar é muito delicada pois exige uma boa coordenação do esforço das juntas de bois.



0 barco vai apinando, enquanto os carpinteiros esperam o momento de lhe enfisgar os pranchões, mal ele abata um pouco, depois de ter atingido o ponto cimeiro da viragem. Depois regula-se-lhe a inclinação, cavando a terra sob os apoios, que por fim assentarão em soleiras.



Procede-se à tosa do costado, batendo a linha ao longo das fiadas. Reprega-se tudo por fora, ficando as pontas dos pregos reviradas. O sagro é preso às cavernas com cavilhas de ferro. Tudo isto é feito ao longo do casco, trepando os carpinteiros em banquetas ou madeiros, pendurados como andaimes.



Para a calafetagem, preparam a estopa em rolos, que depois vai ser metida nas juntas com os ferros - os grafetos - accionados por meio de macêtas. Quando o casco não é novo, usam latinhas com água para limpar os restos do calafete anterior.



Depois de calafetado, o casco será embreado com pez louro, a que se adiciona um pouco de gordura de carneiro para correr melhor. Esta mistura é aquecida em panelas de ferro de três pés, e aplicada com escopeiros - uma espécie de pincéis feitos com pele de carneiro. Procede-se à embreagem pelo exterior e posteriormente por dentro do barco, o que vai exigir nova operação - o botar abaixo.



Nada de gado, unicamente gente a botar abaixo: os que pegam aos cabos das polés das jangadas para lascar o barco e os que, de lombos aos costados, amortecem o peso e o andamento da bisarma. Para botar abaixo usam uma escora que serve de alavanca, empurrando a parte média da borda livre do barco, conforme vai sendo accionada por um aparelho de força, que a desloca em direcção ao casco. Para muitos, o botar abaixo constitui espectáculo mais lindo do que o tombar.



Já com o barco no chão, procedem à calafetagem e embreagem por dentro, posto o que, o lançam à água de imediato.

No lançamento à água era costume enfeitar a proa com festões de papel ou ramos de flores e a popa com ramos de oliveira. Também se usava que o arrais obsequiasse o mestre carpinteiro e os seus auxiliares com uma oferta de vinho, o que constituía uma prova de apreço, em que se comiam as azeitonas e as bolachas que completavam o festão colocado à proa. Depois da festa, voltava-se de novo ao trabalho.



0 barco no rio, e continuam as andanças. Estamos agora nas montagens definitivas. Põem-se de novo os escamões - dois e não três a cada lado, porque se trata de uma barquinha rabela e não de um rabelo. Os escamões vão enfisgar por entre as dragas e o casco, e ficam contraventados pelas travessas de dentro e pelas travessas de fora, estas encimadas pelas pèjadeiras.
Sobre as pèjadeiras apoiam-se as apègadas, isto é, o próprio estrado onde se manobra a espadela. Entremeado de capas para se firmarem os pés dos pèjadores, estruturam-no o travessão da frente e a cal, esta tendo por baixo a tábua do pão.



Por esta altura, deitadas abaixo as árvores convenientes e transportadas para a praia, vão tratar do amanho da espadela - o remo de governo. Compõe-se este de três partes principais: a emenda apontando para a frente as ganchas da mão; a haste que remata atrás no paíl; e o quiço, assentando na mesa que serve de apoio e de base alargada, com o furo para o tornel - o eixo de rotação.



Ao lado vão formando a vela quadrada, debruada pela relinga.



Entretanto a verga, que suporta a vela, e o mastro já se encontram prontos e a espadela ocupa o seu lugar sobre a chumaceira. Ao porem à prova a espadela vão determinar o acerto definitivo da altura das apègadas.

A obra chegou ao fim. Resta ver a armação do barco.



Para não fugir à frente, puxada pela vela, sujeitam a verga ao mastro com as troças e respectivas polés. A vela, de pano cru, tem um reforço de cercadura -a relinga e é amarrada à verga com os invergues.
Os cabos de manobra da vela, incluem as escotas - ou cotas deitadas às dragas; os arrincabens de abrir a vela; e para bracear, presos aos punhos da verga, os braços.
Finalmente, o espiadoiro da vela é um pequeno aparelho que iça a vela a meio, de modo a permitir que se mantenha livre a vista para a proa, para poder governar.



Quando o barco novo se preparava para trilhar a senda do seu destino, o que tinha pela frente era uma vida de trabalho, de canseiras e de perigos...

Hoje que os novos meios de transporte acabaram com esta embarcação tradicional, o uso que dela fazem é de cartaz das casas de Vinho do Porto.

Amarrados do lado de Gaia, recordam aos turistas uma das mais épicas histórias do rio Douro. Mas durante um dia de festa - o de S. João - a cidade vive de novo a emoção do grande espectáculo das regatas dos rabelos, uma forma talvez um tanto artificial, mas defensável, de guardar uma das suas memórias mais queridas.