08 maio 2006

Da Urbe e do Burgo - V

Quando comecei a abordagem do livro de crónicas de Sant'Anna Dionísio, que intitula esta rubrica, foi minha intenção conseguir autorização para fotografar o Desterrado, no Museu de Soares dos Reis. Tal intento sairia gorado porque o Instituto Português de Museus, através da sua Divisão de Documentação Fotográfica «é o único responsável pelo registo fotográfico das obras à guarda dos museus do IPM».

A excelente fotografia aqui publicada foi adquirida num alfarrabista e é proveniente do espólio de uma empresa gráfica falida. Trata-se de um original impresso em papel de emulsão fotográfica, com 12x17 cm, realizado por um profissional, que se encontra em muito bom estado de conservação. Um verdadeiro achado que, para além da satisfação pessoal da posse, permite a ilustração da crónica que aqui hoje se reproduz.
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A Originalidade do Desterrado

Como se sabe, Soares dos Reis viveu em Roma, como pensionista, horas verdadeiramente atrozes, no momento preciso em que trabalhava na fase mais delicada da modelação da sua obra-prima, o Desterrado.



Por determinação do Governo, em Lisboa, a sua bolsa de estudos havia sido suspensa e por intermédio do ministro português em Roma, conde de Tomar, o artista recebera ordem de regressar.

As chamadas entidades oficiais partiam do princípio de que o tempo que havia sido concedido ao pensionista para realizar a sua académia já bastara. Na realidade, o trabalho do moço escultor encontrava-se apenas na fase preliminar da transposição do gesso para o mármore, pouco antes adquirido.

A situação angustiosa do Escultor avalia-se pela carta, cheia de amarga dignidade, que dirigiu, em começos de Novembro de 1871, à Academia Portuense de Belas-Artes. Tendo a bolsa já suspensa e a braços com um compromisso legal relativo ao desbaste do mármore, confiado a um artífice, o artista trabalha com desespero. Compreenderão, «lá em baixo», a seriedade da sua obra? a sua necessidade de tempo?

Ao fim de não se sabe que incertezas e privações, a moratória foi finalmente concedida, mas com um rigoroso e farisaico prazo.

Em breves meses, Soares dos Reis cinzelou e trabalhou, arrancando do bloco de mármore a maravilhosa figura de nostalgia transcendente que concebera. O prazo, porém, era inexorável e o Desterrado seria remetido, em meados do Verão de 1872, para Portugal, não ainda inteiramente concluído, tal era a pressão das «entidades oficiais».

Por isso, o Escultor se viu na necessidade de mandar tirar o molde de alguns pormenores anatómicos do adolescente que lhe servia de modelo, a fim de poder dar, mais tarde, os últimos retoques que a figura ainda requeria.
Longe estava o artista de prever a provação que lhe estaria ainda reservada.



Mal chegado à Pátria, acompanhado da sua maravilhosa obra, viu cair sobre ela a espantosa suspeita de que era «uma falcatrua». Exactamente, como daí a pouco tempo (em 1877), sucederia a Rodin, ao expor a sua Idade de Bronze, tida como obra de fraude, Soares dos Reis é acusado, à sorrelfa, de haver feito o Desterrado por meio de sucessivos moldes.

É claro que nem todos participavam dessa atitude de desconfiança e maldade. Perante a beleza da escultura, tão rica de simbolismo, muitos rendiam ao artista a devida gratidão. Simplesmente, os bons sentimentos são em regra indolentes e silenciosos, enquanto que os malignos são verminosos e activos. Por isso, em regra, o artista criador da obra de mérito tem a sensação frequente do zumbido e raríssimas vezes a do ar alciónico da verdadeira compreensão.

Em volta do artista, a malícia insinuava-se e circulava. Alguns iam ao ponto de afirmar que a escultura trazida de Itália era, essencialmente, uma obra do mestre italiano Monteverde ( cujo «atelier» Soares dos Reis frequentara algum tempo, em Roma), e não uma obra sua.

A maligna suspeita partia de um pintor que em tempos havia sido amigo e protector do Escultor, ainda adolescente! Outros, ainda, garantiam misteriosamente que a figura do Desterrado era mera «adaptação» de uma escultura clássica existente num Museu de Roma.

À distância de oitenta anos, é lícito perguntar: - Como foi possível levantar e pôr a correr essa monstruosa suspeita? Quem a terá suscitado e alimentado? Que consequências morais terá tido tal insídia na alma hipersensível do Escultor?

Soares dos Reis não era um homem de letras. Não era, como Rodin, um espírito também capaz de usar do sarcasmo, defensivo e catártico. O que sofria, guardava e recozia. Perante a mediocridade ressentida, isolava-se.
Cheio de amargor, chorava para dentro. Daí a seriedade profunda do velho precoce, do macambúzio barbudo, do «neurasténico».

Com precisão, será hoje muito difícil esclarecer o que se passou. O que se sabe, por vagas tradições orais, é que a injúria recaiu em cheio sobre o genial estatuário e que ainda dez anos após a sua chegada de Roma a tradição maldosa do «plagiato» ou da «fraude» circulava em certos mentideros do Porto e de Lisboa, a tal ponto que o antigo ministro de Portugal em Roma, marquês de Tomar, se vira na necessidade moral de dirigir uma carta (em fins de 1881) ao conde de Samodães, director da Academia Portuense de Belas-Artes, a garantir a autenticidade da obra que ele vira, dia a dia, modelar em gesso e plasmar no mármore pelo antigo pensionista, que ele acolhera e profundamente admirava.



O que o Artista terá sofrido em silêncio nessa atmosfera de maldade só o poderão ter pressentido as paredes frias do seu pobre «atelier», onde trabalhava de sol a sol, como vulgar santeiro, a realizar mesquinhas encomendas.

Imagine-se, principalmente, conhecida a sua hombridade, o que o terá trespassado quando descobriu (se descobriu) que um dos malsinantes que com maior sanha espalhavam a insídia de que o Desterrado era uma obra falsificada, fora, alguns anos antes, quem o trouxera para aquela Escola do Porto, onde plenamente se revelaria o seu fatum!

Deixemos, porém, esses abismos ou furnas onde qualquer aprendiz de psicanálise poderia exercitar a sua curiosidade de metamorfoses e disformidades de sentimentos e ressentimentos, e vejamos, apenas, para terminar, onde teria sido chocada a suspeita maligna de que o Desterrado era uma simples obra de moulage ou uma contrafacção de uma obra de museu.

A primeira suspeita deve-se, seguramente, ao facto de Soares dos Reis, compelido (como atrás dissemos) pela necessidade de abandonar Roma antes de poder dar os últimos retoques no mármore, haver remetido para o Porto, juntamente com a estátua, alguns moldes de pormenores anatómicos do adolescente que lhe servira de modelo vivo e sobre esses elementos de estudo haver dado, já em Portugal, a última demão na sua obra antes de fazer a sua entrega à Escola de Belas-Artes.

Daí decerto o rumor, crasso, de que a obra era uma «habilidade de oficina», exactamente como em Paris diriam os mestres oficiais do estilo pompier acerca da primeira obra reveladora da audácia de Rodin. Como se uma verdadeira obra de escultor pudesse ser algum dia fruto de um trabalho desse género.

A segunda suspeita - a de que o Desterrado seria uma contrafacção - , fundava-se (segundo supomos) na existência, no Museu das Termas, em Roma, de uma estátua, Marte em Repouso, na qual talvez se possa notar (pelo que depreendemos de uma fotografia) uma certa analogia de atitude com a obra do estatuário português: o deus é representado como um jovem de formas elegantes mas plenas, na posição de meio repouso, torso um quase nada inclinado, rosto aberto, emoldurado numa cabeleira farta, as mãos cruzadas sobre o joelho da perna esquerda soerguida.

No primeiro relance - segundo nos confessou ainda recentemente Jaime Cortesão, que de surpresa a descobriu um dia e com demora a contemplou - , dir-se-ia que a obra de Soares dos Reis é uma réplica dessa escultura clássica, tida como cópia de uma desaparecida obra de Scopas.

Na realidade, as duas obras são inconfundíveis. A expressão fisionómica, a inclinação do tronco, a posição das mãos, e, acima de tudo, o pathos que envolve a escultura do estatuário português não dão margem a que se admita a brutal insinuação que tão profundamente feriu o grande artista e que certamente não deixou de estar presente na sua alma na hora da tácita revisão dos prós e dos contras das amarguras e humilhações que determinaram o seu desesperado fim.

Sant'Anna Dionísio

03 maio 2006

Silhuetas







... de Metrosideros desenhadas ao anoitecer no céu da Avenida de Montevideu.

26 abril 2006

A Festa das Artes

Aos sábados, sete vezes por ano, acontece a festa das artes na rua de Miguel Bombarda. Vinte galerias inauguram mostras simultâneas de pintura, de desenho, de escultura, de fotografia ou de cerâmica, criando um momento de grande animação naquela rua.





Na origem da festa está um movimento que começou por ser espontâneo e mais tarde veio a ser concertado. Este movimento trouxe a maioria das galerias de arte do Porto para a Miguel Bombarda, permitindo-lhes usufruir do mesmo público e dos mesmos clientes, apesar de cada galeria ter a sua temática e os seus artistas. O público e a cidade também saem a ganhar com esta concentração de exposições.


Yes I am no I'm not, de Isabel Carvalho, na Galeria Quadrado Azul


Problemas de Escala, de Miguel Palma, na Galeria Graça Brandão


Meu Corpo Terra de Alberto Carneiro na Galeria Fernando Santos

Atrás das galerias, vieram outros espaços culturais e, entretanto, surgiram novas iniciativas. O Círculo Cultural Miguel Bombarda (CCMB), entidade que congrega os galeristas, ofereceu à Câmara Municipal do Porto, um projecto de reabilitação da parte poente da rua, da autoria do arquitecto Filipe Oliveira Dias e do artista plástico Ângelo de Sousa. O projecto intervém em duas ruas contíguas, as de Miguel Bombarda e da Boa Nova, dinamizando-as de formas distintas.


Projecto Casulo II, esculturas de João Pedro Rodrigues na Galeria Símbolo.

Enquanto aguarda pacientemente, há oito anos, pela boa vontade do município para execução da obra, o CCMB continua activo, como demonstra a animada abertura de vinte e sete exposições que decorreu no Sábado passado. A próxima festa das artes é já no mês de Maio.

19 abril 2006

... e o Porto aqui tão perto

Uma alternativa aos grandes destinos de mini-férias



Em Lindoso, no Minho interior, é possível permanecer entre o céu e a terra, percorrer caminhos rurais e velhos trilhos de pastores, encontrar, na profundeza dos vales, riachos de águas límpidas a que as chuvas da Primavera concederam nova vida...



... cruzar açudes, contemplar moinhos que outrora produziram pão e mergulhar em piscinas naturais.



Este é um mundo envelhecido e desertificado que também está assinalado pelo espectro dos incêndios com data marcada. Aqui, bem ao lado da maior concentração de espigueiros em Portugal, produz-se, na Barragem do Alto Lindoso, o triplo da energia eléctrica do Alqueva. Para alimentar o litoral.



O Lindoso, que se notabilizou na defesa da linha de fronteira nacional...





... é hoje um paraíso perdido no silêncio dos cemitérios que nenhum tecnocrata de sucesso, no Terreiro do Paço, imaginará.

13 abril 2006

Um desejo chamado eléctrico



Estes simpáticos veículos começaram a circular no Porto em 1895, pela mão da Companhia Carris de Ferro do Porto. Durante a primeira metade do século passado acompanharam o crescimento da cidade ligando o centro às periferias.



Foram o meio de transporte por excelência, circulando rapidamente, para a época, numa rede com cerca de 130 km de extensão.



Penetrando profundamente na malha urbana e dela saindo desenvolto, o eléctrico ligava locais tão distantes como Santo Ovídeo à Ponte da Pedra e o Mercado de Matosinhos a Gondomar.



O ano de 1948 assinalou o começo do fim deste transporte tão popular, com a inauguração da primeira carreira de autocarros.



A agonia do eléctrico foi no entanto lenta. Foi preciso aparecerem os primeiros troleicarros - veículos silenciosos, movidos a tracção eléctrica, sem carris - no alvor dos anos sessenta, para se assistir ao desmantelar das linhas do amarelo.



Primeiro a de Gaia, através da Ponte Luís I, e mais tarde a de Gondomar. O desaparelhar das linhas não mais pararia, até à total paralisação destes atraentes veículos na cidade.





Em 2001 falou-se do regresso dos eléctricos à baixa e fez-se obra concreta: a reinstalação de linhas em ruas onde eles foram reis e senhores durante décadas. O projecto previa a ligação do funicular dos Guindais ao Carmo, uma ideia bem acolhida pela cidade.



Entretanto, com a mudança dos tempos políticos mudaram-se as vontades. As linhas do eléctrico, então instaladas, estão há anos sem utilidade.



Hoje, o que resta do carro eléctrico é uma porção da linha 1, a da marginal, que ligava o Infante a Matosinhos. Foi aí que curiosamente circularam os primeiros veículos em 1895. Percorrê-la entre o Infante e a Cantareira constitui um autêntico roteiro sentimental. Há ainda uma pequena ligação de Massarelos ao Carmo.



Quanto ao mais é nostalgia, e talvez um desejo também, o do Porto voltar a sentir os eléctricos a circular no seu centro histórico.

Agenda

A Ciência e a Cidade

A cidade, ponto de encontros e de desencontros, de partidas e de chegadas, mas também local de excelência da afirmação da cidadania e do florescimento cultural, foi-se tornando progressivamente no habitat da espécie humana, à medida que se caminha para o futuro. Nela ou nos seus arredores vive metade da população do mundo.

A ciência acompanhou esta evolução recente através da criação de novas tecnologias que facilitam a concentração de pessoas e de recursos, que criam e geram novos fluxos de ideias e de produtos. As cidades do futuro estão profundamente dependentes do esforço científico e da capacidade de o aplicar a condições de vida mais justas e solidárias: a ciência do século XXI será determinante para o pleno exercício da cidadania.

Deste modo, tudo o que move a cidade envolve a ciência e questiona o conhecimento científico. Mas as cidades não são todas iguais!
A abertura aos outros e ao mundo é a primeira condição da sustentabilidade. Esta atitude não escolhe capacidades - dos mais jovens aos menos jovens, todos são indispensáveis no processo de construção da Cidade Nova.


É com este mote que a Fundação Gulbenkian está a realizar um ciclo de debates intitulado A Ciência e a Cidade. O próximo é já a 19 de Abril, subordinado ao tema A Mobilidade. Seguir-se-ão até ao final do ano, O Ócio, O Mercado, O Génio, A Alimentação, O Plano e O Risco.

Os comentadores, moderados por José Vítor Malheiros, virão de áreas tão diversificadas como a engenharia, a arquitectura, a gestão, a sociologia, a cozinha, a fotografia, o design, a filosofia, os ralis, a informática, a economia e a farmácia, compondo um cenário promissor.

05 abril 2006

Painéis do Palácio Atlântico

A caixa de comentários está aberta a quem quiser contribuir para a interpretação dos painéis decorativos, em mosaicos cromados, do pórtico do Palácio Atlântico, na Praça D. João I, da autoria de Jorge Barradas.














Agenda

O corta!
festival internacional de curtas metragens do porto 2006

O corta! festival internacional de curtas metragens do porto 2006 define-se como o pulsar de algo que cresce e se multiplica. De cada edição anterior surgem novas ramificações que se desenvolvem e tocam na ideia seguinte.
É assim que o corta! se prepara para a sua quarta explosão de criatividade, entre 18 e 20 de Maio no Auditório da Biblioteca Almeida Garrett.



O corta! é o único projecto de festival para o formato da curta metragem com sede no Porto. A sua integração na vida cultural da cidade ultrapassa claramente a mera apresentação de uma competição de filmes. Nos últimos dois anos foram muitas as escolas que participaram em eventos do corta! e muitos os alunos de audiovisuais, música, cenografia e representação que colaboraram e trabalharam com o festival.

Este ano haverá uma retrospectiva de David Cangardel, um dos realizadores favoritos do festival, uma mostra de curtas metragens da Lituânia, a exibição de filmes de escolas, workshops, uma exposição de instalações multisuporte interactivas, a produção de uma curta metragem num ambiente controlado - ao vivo e com acesso directo do público - e muito mais... O programa está aqui e o festival é gratuito.



Os Dias da Criação

A Incomunidade e a Casa da Eira Longa organizam Os Dias da Criação, a 13 e 14 de Maio de 2006 em Vilar, Boticas, Trás-os-Montes. A intenção é promover o conhecimento não telesabido, não intermediado por outdoors e outros folhetos que só é possível no estar ao vivo. Os organizadores apelam à presença diversificada de criadores galegos e transmontanos, nas distintas árias da criação: audiovisual, escrita, performance, música, pintura, fotografia, pensamento, artesanato e escultura. Apesar de se tratar de um encontro de âmbito regional, garantem que não haverá qualquer segregação relativamente à presença de criadores que fisicamente tenham nascido noutras paragens.