

«A gente a que o pintor sempre procurou dar corpo e alma, e que lhe sai ao caminho mal pega no lápis e no pincel, é aquela a que Fernão Lopes chamou arraia-miúda. Isto, que nunca passou despercebido àqueles que seguiram empenhados a sua obra, tornou-se pura evidência a todos quantos tinham olhos na cara a partir de Ribeira Negra, o magnificente historial da miséria e da grandeza da população ribeirinha do Porto, exposto pela primeira vez em 1984, no Mercado Ferreira Borges.»

«Há uma brutalidade nesta pintura, digamo-lo sem qualquer hesitação; brutalidade que consiste em obrigar-nos sem trégua a pensar que o homem é o mais mortal dos animais, que o seu corpo não cessa de ser corroído pela lepra do tempo, que o esplendor da sua juventude se converte com facilidade na mais grotesca paródia de si próprio, que tudo nele está inexoravelmente votado à morte.»

«É uma crueldade, é certo, mas a compensá-la há também em Resende uma infinita piedade por estas criaturas cobertas de farrapos, quase sempre mulheres envelhecidas muito antes de serem velhas, porque tudo lhes faltou excepto o mais amargo da vida, e a quem também coube em sorte, apesar de tudo, semear a terra da alegria.»

«Se pensais que exagero, olhai este painel de cerâmica, variações da anterior Ribeira Negra, que lhe encomendou a Câmara do Porto justamente para a Ribeira, num gesto análogo ao da Câmara de Barcelona para murais e esculturas de Miró.»

«Com mão aérea e certeira, o pintor, uma vez mais, povoou essa centena de metros quadrados de grés com as suas visões líricas ou dramáticas: crianças, mulheres, adolescentes, animais repartem entre si o espaço e o ritmo, a cor e a luz da sua cidade, com um lúcido ardor que é o outro nome da sabedoria. Posso garantir-vos que desde os seus primeiros trabalhos,* toda esta figuração, vinda do mais rasteirinho da terra,** estava destinada a ascender pela sua mão a essa suprema dignidade que só a arte confere. Eu creio que o que se faz aqui é mais do que perpetuar o rosto de uma cidade, de um país – é dar, apesar de tudo, algum sentido à vida.»
* Pascoal, 1942; Rua, 1946
** Alentejano, 1950; Ribeira, 1952; A Lota, 1956
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Em A Cidade de Garrett, Fundação Eugénio de Andrade, 1993
3 comentários:
'Acompanhei' a feitura deste painel através das mãos e do coração de um dos ajudantes do mestre.
Um amigo de infância, que se perdeu no tempo.
Inesquecível, porém.
(ouves, Pedro C.? Como diz eternamente a canção que me mostraste, ambos ainda meninos, no atelier de pintura do teu tio: "Like a bridge over troubled water"... - Amigos para sempre; além de tudo. E de todos.)
Curioso, como tanta ilustre gente sentiu o Porto sem no Porto, ou arrabaldes, ter nascido.
O Camilo foi um deles, o Eugénio foi outro. Mas quem os lê pode ser levado ao engano, tanto pelos escritos mordazes de um, como pela singeleza do outro, que mais parecem gente que com esta gente conviveram desde a barriga de suas mães.
Os desenhos estão muito bem, até valorizados nestas fotografias; e o texto não o conhecia. Belo e importante trabalho.
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