21 março 2016

O Clemente

Em memória de D. João VI, o rei que fugiu das tropas de Napoleão Bonaparte para o Brasil, Portugal ofereceu à cidade do Rio de Janeiro, durante as comemorações do IV Centenário da fundação daquela cidade, uma colossal estátua equestre, obra de Salvador Barata Feyo, de que esta é cópia fundida em bronze. Foi inaugurada em 1966 na Praça de João Gonçalves Zarco, orientada na direcção daquela cidade brasileira. Durante a renovação do local, operada pela Porto 2001, Capital Europeia da Cultura, a estátua foi apeada do pedestal de granito original e colocada na plataforma onde se apresenta actualmente. No Rio de Janeiro, a escultura encontra-se na Praça 15 de Novembro.

17 março 2016

O Porto dos meus velhos tempos

Do Porto da minha mocidade, burgo inteiriço e tão essencialmente mesteiral que Attayett, Cristiano de Carvalho, Manuel Laranjeira eram uns príncipes do Renascimento, afora o espadim, já pouco resta. Demoliram o Palácio de Cristal, último reduto dum passado simples, cheio de histórias de caixeiros enamorados pela filha do patrão, tirano de cabelinho na venta, e de guitas com sopas da Maia. Persiste a espreitar por cima do bairro, dos semiarranha-céus da Praça D. João I, por cima da torrente de automóveis caros e do catitismo da Rua de Santa Catarina a pasmada da torre dos Clérigos. De quando em quando, olha-se para ela, e solta o seu grito como ontem, como amanhã:

- Lá vai!

Quem lá vai é o tempo, levando os reis constitucionais, os cabeças de motim da Janeirinha, os bravos do 31 de Janeiro, D. Manuel que viu os lençóis no Palácio das Carrancas cortados em tiras para relíquias, as vagas do povo ululantes: viva a República! Foram-se estes seres, estes mitos, e as horas, os dias, os anos lá vão indo, lá vão despenhando-se contraditoriamente na catarata surda da eternidade sem ruído nem rasto. Os viajantes voltavam do Porto com a torre pregada no firmamento estelar das suas retinas para todo o sempre. Quedaria ali impertérrita, ponto de interjeição, coluna de Hércules, roca por afiar, plinto barroco, marco miliário lavrado, até a consumação. Ela e a voluta atrevida e rendilhada das duas pontes sobre o Douro. Louvado seja, ainda existem esses temas do orgulho portuense! O mais deliu-se. Voltou-se também a página do folclore. Já lá se não vêem gaiatos malcriados, nem varinas de língua mais vulnerante que estoques. Extinguiram-se de uma vez para sempre as vozes shakespeareanas contra o desalmado que dançava o saricoté quando elas corriam vergadas debaixo da canastra do peixe: ó meu filho de trinta pais, tu não irás fazer genástega...

Sobe-se ainda a rua torta e escalavrada do Bonjardim, mas naquela casa de cornija abacial e reixas verdes já não assoma o rosto especioso da mulher mais linda e brejeira do burgo. Do seu João José - não sei se por despeito maldoso - dizia-se que estava tão enramado que dois cucos a cantar nas duas hastes mais altas se não ouviam um ao outro. Na Rua do Loureiro, o diligente marçano puxava o patego de Vila Nova de Famalicão pela aba do paletó para dentro da quitanda. E por todas aquelas ruas sem nome, escorregadias, alumiadas a gás, com um gato preto, de cócoras, à espera como um Buda desabusado, e o infalível namoro do asfalto para a janela de guilhotina, ainda se viam discorrer capas à espanhola., terçadas para o ombro com garbo donjuanesco, botas à Frederica, possivelmente ectoplasmas camilianos ou encarnações metapsíquicas dos romanceados de S. Miguel de Seide.

Que mais do meu velho tempo, Pai da Vida? Do meu bom velho tempo subsistem também os carros americanos, que saíam maviosamente de manhã da Praça de D. Pedro, Rua de Santo António acima, para regressarem à noite pela Rua das Carmelitas abaixo. Iam fazer o giro da Rua da Constituição, mais pitoresco e longo que a Volta ao mundo em oitenta dias, de Júlio Verne. As beatas tinham tempo de sobra para rezarem as treze coroas gloriosas de Nossa Senhora. Os poetas compunham poemas mais longos que a Morte de D. João, e pares jucundos derretiam-se de bem-querer e desderretiam-se fartos. Nos tempos anteprimaveris, o passageiro contemplativo deixava-se conduzir por ali fora, devassando hortos onde entre japoneiras em flor enxugavam cueiros de meninos. Essas camélias rubras ou de brancura virginal, quando não eram de mescla, estavam ali, dir-se-ia, para exortar o peregrino incauto: - Viva! Olhe para nós como somos bonitas! Conforte-se connosco. Repare que lá em baixo também está sempre no seu posto a Torre dos Clérigos, aquela boa velhota.
As coisas do Porto falavam todas, precisamente porque os homens eram muito cerrados e metidos consigo. Vão lá hoje procurar esses Cássios que encontrarão tributos de verbo largo e inesgotável!

Os bons habitantes, sim, quando abriam a boca era para pronunciar os nomes dos seus próceres, Junqueiro, Basílio, Bruno, Duarte Leite. De olhos admirativos viam-nos no cenáculo do Camanho, depois desamarraram dali para a Praça Nova onde prosseguiam, deambulando até altas horas, quer nas noites serenas, quer sob o gume cortante dos códãos, o debate animado ou o colóquio vicioso. Tornaram-se proverbiais, como se fossem vertidos em bronze à semelhança do Imperador, seus vultos quotidianos: Junqueiro enterrado nas duas voltas do cache-nez aos quadradinhos, pouco menos que manta zamorana, a barba hebraica perlada de molinha; os outros de barbas ou sem elas, gesto largo mas com o seu ritmo, voz inspirada as mais das vezes, versando com a roda tão atenta como questionadora os infinitos problemas deste mundo e do outro. Entre eles os que diziam respeito à vida e história da nação ou que implicassem com a ética da liberdade.

Esta Praça é que foi a verdadeira Universidade, não apenas do Porto, mas de Portugal. Dali saiu a geração que contribuiu em boa parte para fazer a República e que arejou as letras e sobretudo a pedagogia, impregnadas ainda de miasmas. Estou em dizer que, se se formaram ali homens cujo nome apenas fulgurou meteoricamente na baça atmosfera intelectual, outros o insculpiram para todo o sempre no pátrio panteão: Teixeira Rego, Pádua Correia, Teixeira de Pascoais, Leonardo Coimbra, José Caldas, Ângelo Montalvão, António Patrício, Abel Salazar, Justino de Montalvão, Rómulo de Oliveira, Newton de Macedo, etc. etc., para não falar senão dos falecidos.

Os mestres da Praça Nova tinham a elegância extrema da isenção, como Sócrates. E se ensinavam a ciência de governar e faziam a crítica de governantes e governados por todos os processos da inteligência, inclusive a anedota e a sátira, desconheciam a arte de escalar o poder. Criaram bons discípulos e maus grimpadores.
Poetas e sociólogos estavam integrados no burgo como o Bulhão. Junqueiro era ecumenicamente português. O gentio apreciava-o menos devido a esta falta original. Andavam no ar os nomes do Belchior e do Ferramenta, que tinham embarcado no aeróstato, máquina assombrosa e redonda como uma caçoila de Vale de Ladrões, em que muitos sonhavam uma dirigibilidade triunfante. Tanto subiu, tanto subiu, julgaram muitos, que se perdeu nos abismos do céu. O Porto celebrava também o bacalhau à Gomes Sá, outro motivo da sua fama.

Afora isto - ainda não se concedera o indulto a Camilo que se fartara de fazer pouco dos paroquianos - o Porto era uma terra honrada e satisfeita com os destinos. O Hotel da Batalha albergava a província e o Brasil. Muitas brasileirinhas gentis ali encetaram um idílio que as atou a Portugal por toda a vida. Em matéria de moral, a cidade era austera, anglicanamente austera. De portas adentro, ninguém tinha nada a ver com o governo de cada um. Calúnias que Entre-Douro-e-Minho fosse um desaguadoiro de bastardos.
O Porto era brioso do que fizera, das suas arrancadas, do seu D. Pedro, do próprio jacobinismo, concordes monárquicos e republicanos na glória do 31 de Janeiro. E, quanto à filáucia, não havia mão, fosse patrícia, vestida de anéis, fosse papuda e grossa do trabalho, que espalmando-se no peito não desse um digno compasso à voz ufana:
- Tripeiro com muita honra!

AQUILINO RIBEIRO, no livro de evocações Arcas Encoiradas (1953)