Hélder Pacheco, em recentes entrevistas dadas a propósito do lançamento de «O Livro do S. João», de que é autor, diz-nos que a referência escrita mais remota às festas de S. João no Porto é de Fernão Lopes, na Crónica de D. João I. Aquele historiador das tradições da cidade, refere ainda Almeida Garrett que, no início do século XIX, terá aludido aos festejos são-joaninos em três pontos da cidade: na Lapa, no Bonfim e em Cedofeita. Nostálgico, Hélder Pacheco recorda o apogeu dos festejos nos anos cinquenta e sessenta com as festas de bairro e as multidões que então afluíam à baixa.

Hoje o ponto alto das festas são-joaninas é na Ribeira com dois fogos de artifício. Um da margem direita e outro da margem esquerda. Perguntar-me-ão, «dois fogos, não podia ser só um?». Sim, podia ser só um, mas o fogo, sendo de artifício - tal como a divisão político-administrativa entre o Porto e Gaia - não tem em conta a
realidade demográfica da região.
A propósito de fogos festivos e das suas envolventes, deixo aqui um excerto de um hilariante conto de
Manuel Jorge Marmelo, retirado da colectânea Porto Ficção, publicada pelas
Edições ASA em 2001, intitulado precisamente:
Fogo de Artifício
O senhor presidente da Câmara tinha garantido oitocentas e trinta e seis rebentações de pólvora sobre as águas turvas do Douro, em pirotecnia tradicional, e mais trezentas e vinte e sete explosões de fogo-de-artifício japonês, oferta especial à cidade, tudo acompanhado por vários milhares de decibéis de música épica e jogos de holofotes comandados por um computador inteligentíssimo, instalado do lado de lá do Douro.


Quando o último rojão se desfez no céu, as bocas do povo amontoado nas margens, ao longo de vários quilómetros, permaneciam escancaradas, tardando igualmente em dissipar-se dos olhos arregalados os reflexos das derradeiras fulgurações luminosas. Foi um foguetório lindo, que muitos garantiam ter sido o mais impressionante que a cidade alguma vez havia visto, e ninguém se espantará que a nenhum dos presentes tenha ocorrido a ideia de contar cada uma das rebentações dos petardos. Mesmo, porém, na remota possibilidade de alguém o ter feito, o mais certo é que ao minucioso espectador - algum invejoso da oposição! - tivesse escapado o estrondo que excedeu as mil cento e sessenta e três em que assentava a promessa do imponente edil, o qual há um ano e treze dias se debatia com o magno problema político do fogo-de-artifício e com a necessidade de provar ao mundo que os gajos do Porto são perfeitamente capazes de organizar escorreitamente um arraial popular.

Não fosse, contudo, o sucedido nos primeiros minutos do ano 2000 - e a paródia nacional em que se transformou o «reveillon» falhado dos tripeiros - e o líder da autarquia não se teria dado ao trabalho de confirmar cada um dos rebentamentos. Todavia, o estoiro supranumerário não deflagrou imediatamente no científico espírito do engenheiro uma centelha de estranheza que fosse, atribuindo-o antes a um gesto de cordialidade da empresa contratada para oficiar a romaria. Mil cento e sessenta e três ou mil cento e sessenta e quatro foguetes - que diferença fazia uma explosão a mais ou a menos? O que importava é que em duas semanas o Porto e as gentes no Norte mostraram ao mundo, com três formidáveis espectáculos de luz e cor - no «reveillon» 2001, na festa de Reis, ressuscitada por força do notável falhanço de 2000, e na abertura oficial da capital da cultura - que as más línguas melhor fariam se guardassem respeito ao invicto burgo. Ora tomem lá disto!


O edil fechou os olhos, acabou de bater as palmas com que se assinalou o fim da festa e desenhou nos lábios um sorriso à medida das circunstâncias, satisfeito e altivo, para lançar em redor e assim pôr no devido sítio os vários ministros e demais lisboetas que, às dezenas, tinham subido da capital com a secreta esperança de assistir ao vivo a mais um dos já proverbiais tropeções do orgulho tripeiro. Mas fosse porque o presidente do conselho de administração de uma empresa privada sustentada por fundos públicos se atreveu a dizer que
- Agora só era preciso que o vosso metro se fizesse enquanto o diabo faz estourar um foguete
ou por outro motivo qualquer, o certo é que o sorriso do autarca não durou muito tempo. Desvaneceu-se num pum! e deu lugar a um esgar de espanto, de terror até. O presidente do conselho de administração da empresa privada sustentada por fundos públicos temeu que fosse sua a culpa do sucedido - há piadas que devem ser guardadas para melhor altura e já houve casos de ministros demitidos por coisas assim. A causa do fim do sorriso era outra, porém, até porque o edil não chegou a ouvir o gracejo até ao fim; no instante mesmo em que era dito, um diligente assessor da presidência da Câmara agarrara o engenheiro pelo braço e, entre dentes, murmurou-lhe a única coisa que, para além de um interruptor defeituoso que fizesse colapsar o espectáculo, lhe podia ter estragado a fruição do triunfo:
- Senhor presidente, lamento ter de lhe dizer isto, mas está um corpo a boiar no rio.
(...)
Manuel Jorge Marmelo