A crónica abaixo, de
Luísa Dacosta, foi publicada na revista Máxima em 1992. De então para cá muita coisa mudou entre o Passeio Alegre e o Ouro. O eléctrico da linha 1, já não corre pela marginal com o sorriso Colgate estampado no rosto. Parece lento e cansado, agora que se desloca ronceiro e quase sem passageiros no trilho que partilha com os peões.
A língua de areia do Cabedelo, perdeu a magia há semanas com o início da construção dos polémicos molhes do Douro.
Também já não há dorsos curvados na apanha da bicha para o isco, nem miúdos a brincar livremente no jardim do Cálem. A Europa que trouxe a remodelação da marginal retirou-lhe o tipicismo.
Do conjunto de árvores de grande porte do Ouro, restam poucos exemplares, sobreviventes desesperados da política arboricida municipal, e até o estaleiro naval do Ouro está com um ar abandonado e decadente.
A marginal, contudo, não perdeu o encanto. Continua a valer a pena percorrê-la a pé, de bicicleta ou de eléctrico.

Tarde de Verão
«Apesar da massa das árvores, do jacto empoado de luz do repuxo, o calor pesa e amodorra o jardim. Espero o eléctrico e olho a linha do casario a alterar-se. Por isso o meu olhar se prende preferencialmente a duas casas: a que se segue à Rua das Laranjeiras com o seu rosa bolo-de-aniversário, bordado pelo branco das varandas e beiral, chovido em recorte como franja de chalinho que aconchegasse os telhados de duas águas e aquela outra de majestade antiga, vedada por altos portões de ferro, com seu jardim de palmeiras, suas varandas-terraços de deck de navio, seus mirantes, seus telhados, preciosos, como caixas nepalesas.


O calor continua e o que nos refresca é a lembrança do que não se vê: a língua de areia do Cabedelo, os barquinhos na faina, o Brasil, pequenino e breve, da avenida das palmeiras, a quietude das canas de pesca, à espera que o peixe morda, o musguento das pedras descobertas pela maré vaza.

Felizmente aparece, festivo, o eléctrico: amarelo e rosa com aquele estampado largo e achatado sorriso Colgate, para toda a vida. Toca a entrar! Deixada para trás a casa mais íntima e maneirinha do Passeio Alegre: a do poeta Rebordão Navarro, como que ajoelhada para melhor beber o encontro do rio e do mar, paramos na Cantareira, os barquinhos, presos ao paredão por longas cordas, como gadinho que não se quer extraviado. Que nome lindo e cantante! Cantareira, porquê? Porque as casas se dispõem amorosamente como os caquinhos nas cantareirinhas de brincar? Assim o dá a entender Raul Brandão: "As casas, limpas como o convés do navio, espreitavam para o mar, umas por cima das outras".


Vamos ao rés do rio. Do lado da terra casinhas baixas de porta e janela, a vida sobrante das roupas que não cabem de portas adentro em frente a acenar a deuses à outra margem, ainda a retalhos, mítica e frondosa de verdes espessos. Nas margens lodosas, floridas de asas brancas, há dorsos curvados na apanha da bicha para o isco. E começa o jardim do Cálem, com os antigos canhões de ferro, poleiro e regalo de pombas, gaivotas e meninos.

Na paragem, que dá acesso à Pasteleira, a capela de Santa Catarina espreita lá de cima do seu mirante, ainda aldeão. Continuamos na intimidade do rio, sob a massa pujante de tílias e plátanos: é o estaleiro do Ouro, onde o "Mar Pacífico" renova o cavername e o "Leixões" aguarda pintura. E, súbito, à esquerda: escadinhas, chafariz e mictório. Paragem do Ouro. Há freguesia para atravessar para a Afurada, que desce em presépio até às águas como se se preparasse para embarcar no rebanho de traineiras, que não se fez à faina. A "Flor do Gaz" já vem a meio da corrente de reflexos quebrados pela ondulação. Não tardará a atracar.»
Luísa Dacosta