20 janeiro 2007

Onde a tradição ainda é o que era

A singularidade da figura oitocentista da montra, deslocada no tempo há gerações, serena e levemente altiva, a par da peculiar actividade de produção de cabeleiras num ambiente fin-de-siécle, elevam a pequena loja conhecida como Cardoso Cabeleireiro, na Rua do Bonjardim, à condição de instituição urbana portuense.





Quando lá entrei estava Horácio Teixeira a «fazer a franja», a prender e a alinhar com destreza, num fio esticado, conjuntos de seis a nove cabelos. Para formar uma cabeleira são precisas 2000 fiadas destas, que podem demorar três dias a concluir. Trabalha com cabelo natural, matéria-prima que já foi mais fácil de encontrar. «Hoje os cabelos usam-se curtos; para serem trabalhados têm que ter no mínimo vinte centímetros de comprimento», diz-me.



A actividade já teve melhores dias, «no tempo em que os actores do Sá da Bandeira vestiam a rigor». «Hoje, um actor», mesmo que vá representar o papel de Luís XV, «entra no palco de qualquer maneira», acrescenta.

Nada é como era, com excepção daquele estabelecimento. Ali impera a tradição, patente num conjunto de mais de 300 cabeleiras para alugar - de senhores e de vassalos, de santos e de anjos - tratadas pelo mesmo método e com os mesmos instrumentos que eram usados há cem anos, quando a casa foi fundada.

Jerónimo Cardoso Jorge, o fundador, regressou ao Porto após ter visitado a Feira Universal de Paris em 1900, carregado de revistas e entusiasmado com o que tinha visto e aprendido por lá. Em 1906 alugou o edifício da Rua do Bonjardim, instalou a casa de família no primeiro andar e a loja no rés-do-chão, trabalhando como cabeleireiro e fabricante de perucas, capachinhos e bigodes. Chamou os sobrinhos, Manuel e António, para junto de si e, incansável, continuou a viajar por França e Espanha, donde trazia cabelo, e por Portugal e pelo Brasil, angariando clientes.



Morreu em 1920 deixando o negócio nas mãos dos sobrinhos. António desapareceu em 1973 e o irmão em 1988. Sem descendentes directos confiaram a casa a Horácio Teixeira e a Israel Matos, os seus mais leais empregados. Horácio, hoje com 61 anos, começou como aprendiz, aos 10 anos de idade, «depois de ter completado a 4ª classe». Israel foi introduzido na arte por um vizinho, empregado da loja, em 1965, quando tinha 11 anos.

A actividade da casa tem a época alta a partir da Páscoa, coincidindo com as festividades religiosas até Setembro. Nos restantes meses do ano «aguenta-se, há sempre que fazer».



Pergunto a Horácio Teixeira o que acontecerá à loja quando se cansar de exercer a profissão. Responde-me encolhendo os ombros e levantando as sobrancelhas, ao mesmo tempo que afasta os braços com as mãos abertas. Teve «três miúdos aprendizes» que se desinteressaram pela arte. Provavelmente fechará.

30 comentários:

th disse...

Tenho que lá passar quando fôr ao Porto. Esta casa faz-me lembrar uma chapelaria que existia, parece que já não está lá,no Largo do Padrão.
Vou-te roubar uma foto, sei que não te importarás, para colocar no meu Grupo e na Sebenta.
Um abraço, com muita Amizade, th

Anónimo disse...

Extraordinário! Ainda ontem passei por esta casa e fiz duas fotos para o meu album. E embora não tenham nem a qualidade nem o pormenor, nem a sensibilidade que estão subjacentes aos registos de Carlos Romão, arquivei-as para memória futura.
Um abraço para este grande artista do Porto!
Álvaro Mendonça

António Conceição disse...

Leio este belíssimo documento e sinto-me deste Porto. E sinto-me destes Cardosos.

Anónimo disse...

já não visitava esta página há bastante tempo, porque me tenho perdido pelas ruas do Porto que continuo a conhecer; é mesmo uma cidade surpreendente!!!

FRANCISCO OLIVEIRA disse...

Quando eu era uma criança, aí pelos anos quarenta, passava por esta casa e ficava embasbacado a olhar para as cabeleiras na montra (talvez nas mesmas cabeças que ainda hoje existem) e que me faziam arrepios, porque me diziam que oa cabelos eram retirados dos cemitérios quando de novos enterramentos. Por tudo isto nunca esquecerei esta casa e ainda bem que dela fez uma bela memória fotográfica.

Duarte disse...

Excelente documental, formativo e comovedor

Beatriz disse...

Ola, Carlos. Como estás? Tenho um novidade pra ti; em maio embarco para o Porto.Dois anos vivendo por ai.Espero poder tomar um café ctigo.Bem...em relação as fotos é relamente triste estas perdas que se vai sentindo em relaçao a certos ofícios.Cá, andamso a perder os profissionais de artefatos em bambu (cestos, bolsas, moveis, etc). A velocidade que nos imprime a vida moderna, faz o trabalho artesanal perder toda a sua magia e os miudos não se interessam. É pena!
Abraços e da uma espidada no www.fotolog.net/olhar_interior

Anónimo disse...

Bom dia!
Estou outra vez a dar uma olhadela ao seu blog. Acho que vou visitá-lo muitas vezes. No mes de dezembro estive no Porto, mas não conhecí muitas coisas dessa linda cidade. Estive na livraria Lello para comprar alguns livros portugueses: o último do Saramago e uma antologia da poesia portuguesa que me aconselhou o empregado. Na minha volta para Espanha comentei aos companheiros: "estive a comprar livros na livraria mais bela de portugal" e mostrei-lhes uma pequena revistinha da livraria para eles puderem concordar comigo. Depois de descobrir a sua página eles podem ver que as mihas palavras não eram exageradas. Estudo português numa escola de línguas de adultos e temos um blog para partilhar coisas de Portugal e da cultura portuguesa, agora vamos ter o seu blog entre os nossos favoritos. Não me importava ser careca se morasse no Porto para ir visitar ao cabeleireiro Cardoso!
O meu muito obrigado pela beleza das imagens e das escritas que nos ofereçe.

De Amor e de Terra disse...

Olá!
Vim até cá movida pela curiosidade que um Amigo em mim fez despertar, falando-me muito e bem sobre este Blog, com muita coisa bela acerca da Cidade que considero "A minha Cidade" e vejo que valeu a pena!
Parabéns!!!
Vou continuar a apreciar todo este belo trabalho, agora com mais minúcia, para apreciar tudo que ele contém sobre esta minha/nossa maravilhosa e surpreendente Cidade.
Um abraço de todas as cores da
Maria Mamede.

rps disse...

Excelente história, excelente post, excelente serviço.

Carlos Romão disse...

Tal como Francisco Oliveira, também eu, em miúdo, julgava que os cabelos usados nas perucas desta casa vinham dos cemitérios. Não sei porque pensava tal coisa, ao contrário do Francisco nunca ninguém mo disse. Talvez fosse fruto da imaginação infantil. A par disso, a figura feminina da montra exercia um grande fascínio sobre mim, que não se desvaneceu de todo. Deste modo, o post acaba por constituir um reencontro comigo próprio. Mais, se património é a memória colectiva, esta loja merece o epíteto de pleno direito.

Neves de Ontem,
segundo uma amiga valenciana, professora de catalão e estudante de português, a língua de Camões é a mais rica das línguas românicas. A afirmação, que eu não estou em condições de confirmar, compraz-me. Bons estudos de português e, já agora, deixe aqui o endereço do tal blogue em que partilham coisas de Portugal.

Anónimo disse...

Passo imensas vezes na Rua do Bonjardim, (a transversal "Quelha do Farrapeiro é o meu local preferido para deixar o carro ao fim-de-semana) e por incrível que pareça nunca reparei nesta loja. Um dia destes quando lá passar vou mesmo dar uma espreitadela. Obrigado senhor Carlos Romão, por me dar a oportunidade de conhecer mais sobre a nossa cidade, com a apresentação destes magníficos documentos. PS: E porque ainda não o fiz, convido-o, para quando surgir a oportunidade, a fazer uma visita ao meu blogue, apaixonadamente dedicado também ao Porto.

tmc disse...

Mais uma vez,
muitos parabéns,
pelo trabalho e pela consistência.

Anónimo disse...

E não que é uma das minhas lojas preferidas :)

Anónimo disse...

Sem dúvida, não foi muito filológica a minha asseveração! Mas gosto tanto da vossa "magna língua portuguesa"...
Um abraço, Carlos.

DE CORPO E ALMA disse...

Este post é quase uma obra de escavação arqueológica que afinal está à vista de todos. Fantástico que o Porto conserve lugares como esse.

Anónimo disse...

Boa noite!
A minha visita a vossa cidade foi tão curta que não reparei em tantas maravilhas. Vou ter de voltar quando eu puder.
O endereço do nosso blog é o seguinte:
http://www.amendoal.blogspot.com
Aceitamos sugerências, comentários e o que quiserem. Queremos conhecer melhor a vossa língua e a vossa cultura. Obrigada

Anónimo disse...

Voltei para te falar de bonecas, da casinha de chocolate, do Gepetto e do Peter Pan.Tu, percebes!
Quanto mais olho, mais gosto!
Vou estar sempre atenta.Bj

isabel mendes ferreira disse...

a tua poderosa beleza.




sempre.


sempre.




sempre.





piano.

Anónimo disse...

tao nostalgico. tao irreal

Anónimo disse...

Que pena se um dia estes tesouros se perdem... São estes apontamentos únicos que emprestam
à cidade aquela sua beleza intemporal!
Parabéns pelo blog e pelo manisfesto! Revejo-me nos dois!

[A] disse...

A loja parece ainda mais bonita nas suas fotografias. è uma pena que se percam este tipo de lojas, mas também é pena que o comércio tradicional não saiba dar a volta por cima e tirar partido daquilo que é característico.
Um dia destes encontrei uma nos Lóios uma antiga retrosaria agora remodelada. Bastou-lhe uma limpeza geral, uma pintura, e uma arrumação dos produtos, que continuam os mesmos, por gamas e por cores. Está um mimo!

Pedro disse...

Tenho realmente pena que lojas como esta estejam destinadas ao esquecimento. São lojas assim que dão volume à alma de uma cidade, contrariamente às inúmeras lojas de chineses, pronto-a-vestir e afins que enchem hoje em dia a zona nobre da nossa cidade, que tão melhor podia ser aproveitada.

É bom que ainda haja resistentes :)


Parabéns pelo teu blog Carlos.

Stella disse...

ola. andava a 'passear' por aí e encontrei o teu cantinho. vejo uma paixao enorme pela mais bela cidade do mundo. Parabéns. Se nao te importares continuo a passar por cá pra ficar a conhecer mais um pouquinho da cidade que também é minha :) **

Anónimo disse...

Nossa, fiquei emocionada com tamanho zelo por uma profissão. Esse senhor é fantástico. Acho que você deveria mandar uma cópia desses comments para ele, para dá-lo ainda mais estímulo. O governo deveria fazer deste um ponto turístico, para ver se o senhor ganha uns trocados a mais. Gostei muito de sua reportagem. Um abraço. Sandra.

euseinadar disse...

Mais um belo documento sobre a nossa cidade!

Anónimo disse...

Caro Carlos Romão
Não tenho dúvidas de que foi este seu post, que suscitou a reportagem do Jornal de Notícias sobre a actividade destes fabricantes de perucas. É mais um exemplo de como os blogs vão marcando a agenda da imprensa.
Cumprimentos
António Santos

Anónimo disse...

Só talvez o Porto seja possivel encontrar em simultâneo estas pequenas jóias antigas a par com o que há de mais moderno e inovador.
Indicado por um amigo fui outro dia visitar um belíssimo espaço nos antípodas deste aqui referido o Barba&Cabelo na rua S. João Bosco ao pinheiro manso, muito perto dos edifícios do lago. Um excelente espaço de facto onde se vai cortar o cabelo, provar um vinho ou apreciar uma exposição de arte.
Porém tal como esta nossa jóia antiga provavelmente não se deverá aguentar muito tempo a ver pela clientela presente (incompreensívelmente pouca).
É o nosso Porto refugiado na obsessiva mediocridade (a que muitos chamam conservadora) que tão mal trata o que tem de melhor

Um abraço e parabéns por este belo (conteúdo e apresentação) blog

Amass. Cook. disse...

Antes de mais, queria deixar uma palavra de apreço pela qualidade do post e o detalhe e cuidado com que foi escrito. O seu esforço em mostrar as maravilhas da nossa cidade é muito apreciado.

Infelizmente, e muito lamentavelmente, o Cardoso Cabeleireiro encerrou recentemente a actividade e a loja foi desmantelada. Olho para isto com amargura; também fiquei a saber que a mítica mercearia Casa Oriental encerrou actividade, e vai ser convertida para espaço de restauração.

Enfim, espero que seja possível contribuir de alguma forma para a preservação do comércio tradicional da nossa cidade, que sinto estar em perigo iminente.

Cumprimentos e muitos parabéns!

Carlos Romão disse...

Obrigado pelo comentário, Amass. Cook. Ignorava que o Cardoso Cabeleireiro tinha encerrado. Desloquei-me lá ontem e encontrei a porta entreaberta. No interior estava Israel Matos, um dos sócios com quem conversei em 2007 (Horácio Teixeira já faleceu). Disse-me que a loja iria mudar para outro local mais abaixo, da Rua do Bonjardim, com outro visual, mais moderno. Quando o interroguei sobre o destino da velha loja, se seria para um hotel ou um restaurante, sorriu e disse que sim, sem precisar. Observei que a loja estava quase toda desmontada.

É lamentável. A monocultura do turismo de massas está a descaracterizar a nossa cidade de forma irreversível. Não tinha de ser assim.