Uma crónica de Mário Cláudio, publicada em Janeiro de 2007
Eugénio de Andrade morreu às três e trinta da madrugada de treze de Junho de dois mil e cinco. E a casa onde decorreram os seus doze anos finais, e onde se acha sediada a Fundação que leva o nome do poeta, ali está, enfrentando as intempéries, melancolicamente visíveis nos seus efeitos, de um Atlântico que lhe fica defronte, e que não raro constituía motivo de maravilha do querido autor de Mar de Setembro. Mais do que um lugar de habitação, ou até mesmo do que uma estância da memória, o prédio do Passeio Alegre na Foz do Douro fixa o fiel da balança do equilíbrio de um homem com a cidade que por comprida fase o teve como seu rosto culturalmente mais apresentável. Não frequentei a última residência de Eugénio de Andrade com assiduidade igual à que me atraía ao remoto apartamento, bem menos museológico, da Rua do Duque de Palmela. Só nas proximidades da morte do seu morador, e quando se tinham afastado muitos daqueles que costumavam citá-lo como «o Eugénio» com idêntico despacho ao que é de tom na referência a um qualquer futebolista, é que o procuraria eu mais vezes no seu espaço litoral.Passo agora diante do prédio branco, a todos os títulos em semi-abandono, e espanto-me com a fachada donde a tinta descola, roída pela salsugem, e onde os estores se abatem, semelhantes a tripas velhas. Avista-se ainda um ângulo da biblioteca, tão solitário que corta o coração, e uma ou outra luminescência longínqua, a anunciar que a vida aí afinal se não extinguiu ainda por inteiro. Mas consta-me que atacam o edifício infiltrações de águas que sobem do solo e sub-solo, que o sistema de aquecimento deixou de funcionar, e que as explosões necessárias às obras em curso na barra do Douro abalam perigosamente a construção, vizinha de resto de discotecas que conduzem até ao fim das noites algazarras em que em larga medida se excedem os decibéis estipulados por lei.
Não me interessa apontar eventuais responsabilidades, ou dividi-las pelas partes a quem por certo haverão de caber. Mas não duvido de que não pertencerão as culpas, isto porque quase nunca tal acontece, em exclusivo à municipalidade ou à direcção. Aprendi aliás, e ninguém me decepará a mão por o estatuir nesta crónica, que a incultura, sempre que potenciada pela prosápia, não alcançará senão precipitar resultados desastrosos. Como quer que seja os danos estão à vista, e não há quem levante os olhos para o que deveria ser átrio exemplar, acolhedor dos que admiram em Eugénio de Andrade uma irradiação suprema do talento, que não volte envergonhadamente a atenção para as suas próprias passadas.
O bom destino da Casa de Eugénio de Andrade, a não se situar onde se situa, só poderá estabelecer-se em outras bandas. «Em outras bandas» significará «em gente que encare o amor às letras, e o exercício dele, como questão de sobrevivência de um contexto civilizacional». Se se esquecer uma mão-cheia de coisas, dos partidos às capelinhas, dos incertos estatutos providenciais aos pequenos bustos académicos, das linhas contabilísticas aos boçais ressentimentos, talvez se alcance uma saída. Assim o desejem realmente os que afirmam desejá-lo.
Eugénio de Andrade morreu às três e trinta da madrugada de treze de Junho de dois mil e cinco. Esgotado o período de lhe acenarmos o adeus, é mais do que tempo de o retrazermos ao nosso convívio.
Expresso, 13 de Janeiro de 2007 _________________
Mário Cláudio regressou a este tema na crónica O Espólio de Eugénio de Andrade, publicada no Expresso no passado mês de Janeiro, que pode ser lida aqui.