04 fevereiro 2005

Crepuscular



Crepuscular

A incerteza cai com a tarde
no limite da praia. Um pássaro
apanhou-a, como se fosse
um peixe, e sobrevoa as dunas
levando-a no bico. O
seu desenho é nítido, sem
as sombras da dúvida ou
as manchas indecisas da
angústia. Termina com a
interrogação, os traços do fim,
o recorte branco de ondas
na maré baixa. Subo a estrofe
até apanhar esse pássaro
com o verso, prendo-o à frase,
para que as suas asas deixem
de bater e o bico se abra. Então,
a incerteza cai-me na página, e
arrasta-se pelo poema, até
me escorrer pelos dedos para
dentro da própria alma.

Nuno Júdice

02 fevereiro 2005

Saudação a Hélios




[Edifício que durante dezenas de anos alojou o Diário de Notícias, na Praça da Liberdade. Sugerido por Vera Diana]

Ra para os egípcios, Mitra para os persas, Brahma para os hindus, Adonai para os fenícios e Hélios para os gregos, o Sol foi sempre considerado o mais importante dos deuses.
Pela manhã, depois da Aurora descerrar as pálpebras do dia e soltar as brisas matinais, Hélios sai do oriente, percorrendo o céu num carro puxado por quatro majestosos cavalos brancos - o Oriente, o Brilho, a Chama e o Fogo - que exalam labaredas pelas narinas. Sobe até ao ponto mais alto do meio-dia e então começa a descer para ocidente, até mergulhar no oceano ou descansar atrás das montanhas...

31 janeiro 2005

Encantamento Nocturno em Contra-Luz, na Rotunda



Uma piscar de olho aos autores do Dias com Árvores, que viram o seu pedido de classificação de interesse público, de 11 conjuntos arbóreos no Porto, reconhecido pela Direcção-Geral das Florestas e publicado no Diário da República. Eles dizem que estão «contentes que nem cucos... em cima das árvores». Quanto a nós, estamos todos de parabéns.

28 janeiro 2005

Testemunha do Tempo



Do alto de um frontão triangular, o busto de uma figura feminina com o barrete frígio, símbolo republicano, domina quem passa numa rua com nome fidalgo, o do Morgado de Mateus.

Certamente foi colocada naquela posição dominante, pelo dono da casa, para celebrar a vitória do ideal republicano sobre a monarquia em 1910. Imóvel, sorridente e em silêncio acabou por presenciar a história do século XX.

Desiludiu-se com os desvarios da 1ª República e os sucessivos levantamentos populares e militares. Assistiu à desastrosa participação portuguesa na 1ª Guerra Mundial; ao surto de gripe pneumónica, que matou 100 000 pessoas em 1918; à primeira travessia aérea do Atlântico Sul e à generalização do automóvel e da camionagem nos anos 20; ao surgimento do cinema, o mudo primeiro e mais tarde, já no sossego tumular da ditadura, o sonoro. «Onde vais Isidoro? Vou ao sonoro!» - era um dito popular nos anos 30. Ouviu as primeiras emissões regulares da Rádio. Atravessou o racionamento na II Guerra Mundial, porque as armas do conflito só nos tocaram lá no fim do Império, em Timor. Admirou-se com o advento da televisão e exultou com o regresso da República em Abril de 1974.

Testemunha do tempo, contempla hoje, impávida e serena, a chegada da sociedade da informação e do saber, sem se perturbar com a crise de valores orquestrada pelo cortejo mercantil neoliberal.