Uma crónica de Mário Cláudio, publicada em Outubro de 2004.
A perfeita residência na terra de Eugénio de Andrade, perdoem-me os que antepõem as razões pragmáticas ao florescimento do lirismo, haverá de ser para todo o sempre aquele apartamento em Duque de Palmela, uma sala e uma alcova, unidas por um corredor. Por aí é que caminharia a Mãe, afagando a lombada dos livros alinhadíssimos, por aí é que vaguearia o Pai, íncubo capaz de terríveis malfeitorias. Não é que fosse a localização ideal para qualquer poeta esse piso porventura construído na década de cinquenta, entalado entre esgrouviados jardins do chamado Bairro Ocidental [sic] do Porto, dando para uma artéria, essa sim, com arvoredo de alguma dignidade. Mas abençoava-o a escassez que postulamos como inseparável dos grandes da poesia, e deste com a acrescida razão de se tratar de um criador de simpatias helénicas, timbradas pela vocação do gozo dos quatro elementos heraclitianos, afinal mais característica do sul do quedo norte da Europa.
A casa retinha de resto algo de tenda de nómada, isto sem perder quanto lhe assistia de útero matricial. Os quadros substituíam-se nas paredes, tal e qual como os tapetes dos beduínos, ali ficava a manta de agasalhar os joelhos, conforme ao que fora prática de Camilo, de Raul Brandão e de Aquilino, adoptada por David, por Agustina e pelo autor de Obscuro Domínio. Rimbaud possuía lugar cativo no quarto de dormir do nosso homem, presente através de uma reprodução do célebre retrato, esboçado por Fantin-La-tour. Subiam-se as modestíssimas escadas, e o poeta, acabado de regressar daquela peregrinação à Grécia, conformadora do dever literário de uma inteira geração, oferecia-nos um cálice de ouzo, e punha-se a explicar-nos o horror em que desde a infância trazia qualquer espécie de bebida alcoólica. Evocava uma fantástica cena à la Bruegel, o ribaldo da Póvoa da Atalaia que emborcara muito mais do que o bastante, as «madres terribles» da aldeia, acorrendo munidas de imensas colheres de pau, enfiando-as pela goela abaixo do beberrão, e até o fazerem vomitar o vinho ingerido. Não nos dando tempo a que recuperássemos de semelhante espectáculo, abria as pastas que continham os trabalhos dos amigos pintores, atribuía a cada um deles um comentário atento, privilegiando os que fossem aquilo que caracterizava como «um quase nada», e terminava por nos brindar com o que mais nos agradara, não implicando em tal gesto o menor alarde de munificência.
Já muito se falou da mesa portátil onde Eugénio de Andrade escrevia, e do pitoresco lenço de chintze com que costumava cobri-la. Mas a nossa lembrança mais querida do espaçozinho de Duque de Palmela povoa-se de dois bichos, muito diversos na espécie, ambos porém significativos ex-libris das mãos que os acariciaram. O primeiro é aquele burrico de barro, de um banalíssimo oleiro de Barcelos, que se implantava sobre a estante da entrada do apartamento. O outro é o elefantezinho de Delft que tínhamos numa prateleira da nossa própria estante, e pelo qual o poeta de tal forma se apaixonaria que lho enviámos de presente alguns dias mais tarde, sentindo-nos quase iguais, já o adivinharam, àquele rei descomandado, e um pouco novo-rico, que mandou uma embaixada de espalhafato ao pontífice de uma geração.
Relâmpago, Outubro de 2004
3 comentários:
Muito interessante o texto deste
seu post. Gostei muito de o ler.
Um bj. e boa Páscoa
Irene Alves
Obrigado, Irene Alves. Em breve divulgarei outra crónica de Mário Cláudio, sobre a outra casa que Eugénio de Andrade habitou, a do Passeio Alegre.
Boa Páscoa para si também.
Conheci esta casa por dentro.
No início de 1978.
A fiel descrição fez-me rever esse dia em que tive a oportunidade única de falar com o poeta.
Retenho um pequeno refúgio com dois assentos corridos, um em frente ao outro, onde conversámos.
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