08 julho 2005
Dois ceramistas plastificados
Houve dois industriais de cerâmica chamados Francisco da Rocha Soares, o pai, regressado do Brasil com avultados capitais e herdeiro da Fábrica de Miragaia, e o filho, um activo empresário que desenvolveu e dirigiu várias fábricas de cerâmica no Porto. Rocha Soares Filho criou ainda uma rede de entrepostos comerciais em Lisboa, em Setúbal, no Funchal e em Luanda. Idealista, deitaria tudo a perder ao envolver-se nas lutas entre liberais e absolutistas, como militante activo da causa liberal. É portanto justa a homenagem do município ao evocar este nome naquela rua - apesar do lamentável desaparecimento do belo e evocativo topónimo Cordoaria Velha.
Lamentável é também a recente febre normativa - como se o Porto fosse a Disneylândia - das placas toponímicas da cidade, cuja expressão máxima se encontra aqui: o nome dos industriais de cerâmica, inscrito em azulejos, ocultado por uma placa de... plástico.
30 junho 2005
A Noite do Porto
Shakespeare podia ter vivido aqui. Podia
ter dançado na noite de S. João, quando o rio
transborda para as ruas nas correntes
humanas que as inundam. Podia ter escrito
nos invernos de ausência o que a noite
ensina sobre a privação. Podia ter
ensinado, à beira do cais, que o tempo lascivo
corre como a água, levando o que não há-de
voltar e trazendo o que nunca terá nome
nem corpo. As almas, que empalidecem quando
o sol poente se reflecte nos vidros,
cantam bruscamente o verão: reflexo de um
reflexo, frutos que se deixam colher pela
memória, seres sem ser que não hão-de voltar
a nascer: Mas o que ele cantou, podia
tê-lo cantado aqui. Todos os lugares são,
afinal, lugar nenhum para quem não habita
senão a própria voz: sonho de outra margem,
cantor perdido no labirinto das pontes. Perto
da foz, sem o saber; sonhando a nascente,
como se não fosse ele próprio a única fonte.
Nuno Júdice
29 junho 2005
Esplanada
Naquele tempo falavas muito de perfeição,
da prosa dos versos irregulares
onde cantam os sentimentos irregulares.
Envelhecemos todos, tu, eu e a discussão,
agora lês saramagos & coisas assim
e eu já não fico a ouvir-te como antigamente
olhando as tuas pernas que subiam lentamente
até um sítio escuro dentro de mim.
O café agora é um banco, tu professora de liceu;
Bob Dylan encheu-se de dinheiro, o Che morreu.
Agora as tuas pernas são coisas úteis, andantes,
e não caminhos por andar como dantes.
Manuel António Pina
27 junho 2005
S. João no Porto - entre a realidade e a ficção
Hélder Pacheco, em recentes entrevistas dadas a propósito do lançamento de «O Livro do S. João», de que é autor, diz-nos que a referência escrita mais remota às festas de S. João no Porto é de Fernão Lopes, na Crónica de D. João I. Aquele historiador das tradições da cidade, refere ainda Almeida Garrett que, no início do século XIX, terá aludido aos festejos são-joaninos em três pontos da cidade: na Lapa, no Bonfim e em Cedofeita. Nostálgico, Hélder Pacheco recorda o apogeu dos festejos nos anos cinquenta e sessenta com as festas de bairro e as multidões que então afluíam à baixa.
Hoje o ponto alto das festas são-joaninas é na Ribeira com dois fogos de artifício. Um da margem direita e outro da margem esquerda. Perguntar-me-ão, «dois fogos, não podia ser só um?». Sim, podia ser só um, mas o fogo, sendo de artifício - tal como a divisão político-administrativa entre o Porto e Gaia - não tem em conta a realidade demográfica da região.
A propósito de fogos festivos e das suas envolventes, deixo aqui um excerto de um hilariante conto de Manuel Jorge Marmelo, retirado da colectânea Porto Ficção, publicada pelas Edições ASA em 2001, intitulado precisamente:
Fogo de Artifício
O senhor presidente da Câmara tinha garantido oitocentas e trinta e seis rebentações de pólvora sobre as águas turvas do Douro, em pirotecnia tradicional, e mais trezentas e vinte e sete explosões de fogo-de-artifício japonês, oferta especial à cidade, tudo acompanhado por vários milhares de decibéis de música épica e jogos de holofotes comandados por um computador inteligentíssimo, instalado do lado de lá do Douro.
Quando o último rojão se desfez no céu, as bocas do povo amontoado nas margens, ao longo de vários quilómetros, permaneciam escancaradas, tardando igualmente em dissipar-se dos olhos arregalados os reflexos das derradeiras fulgurações luminosas. Foi um foguetório lindo, que muitos garantiam ter sido o mais impressionante que a cidade alguma vez havia visto, e ninguém se espantará que a nenhum dos presentes tenha ocorrido a ideia de contar cada uma das rebentações dos petardos. Mesmo, porém, na remota possibilidade de alguém o ter feito, o mais certo é que ao minucioso espectador - algum invejoso da oposição! - tivesse escapado o estrondo que excedeu as mil cento e sessenta e três em que assentava a promessa do imponente edil, o qual há um ano e treze dias se debatia com o magno problema político do fogo-de-artifício e com a necessidade de provar ao mundo que os gajos do Porto são perfeitamente capazes de organizar escorreitamente um arraial popular.
Não fosse, contudo, o sucedido nos primeiros minutos do ano 2000 - e a paródia nacional em que se transformou o «reveillon» falhado dos tripeiros - e o líder da autarquia não se teria dado ao trabalho de confirmar cada um dos rebentamentos. Todavia, o estoiro supranumerário não deflagrou imediatamente no científico espírito do engenheiro uma centelha de estranheza que fosse, atribuindo-o antes a um gesto de cordialidade da empresa contratada para oficiar a romaria. Mil cento e sessenta e três ou mil cento e sessenta e quatro foguetes - que diferença fazia uma explosão a mais ou a menos? O que importava é que em duas semanas o Porto e as gentes no Norte mostraram ao mundo, com três formidáveis espectáculos de luz e cor - no «reveillon» 2001, na festa de Reis, ressuscitada por força do notável falhanço de 2000, e na abertura oficial da capital da cultura - que as más línguas melhor fariam se guardassem respeito ao invicto burgo. Ora tomem lá disto!
O edil fechou os olhos, acabou de bater as palmas com que se assinalou o fim da festa e desenhou nos lábios um sorriso à medida das circunstâncias, satisfeito e altivo, para lançar em redor e assim pôr no devido sítio os vários ministros e demais lisboetas que, às dezenas, tinham subido da capital com a secreta esperança de assistir ao vivo a mais um dos já proverbiais tropeções do orgulho tripeiro. Mas fosse porque o presidente do conselho de administração de uma empresa privada sustentada por fundos públicos se atreveu a dizer que
- Agora só era preciso que o vosso metro se fizesse enquanto o diabo faz estourar um foguete
ou por outro motivo qualquer, o certo é que o sorriso do autarca não durou muito tempo. Desvaneceu-se num pum! e deu lugar a um esgar de espanto, de terror até. O presidente do conselho de administração da empresa privada sustentada por fundos públicos temeu que fosse sua a culpa do sucedido - há piadas que devem ser guardadas para melhor altura e já houve casos de ministros demitidos por coisas assim. A causa do fim do sorriso era outra, porém, até porque o edil não chegou a ouvir o gracejo até ao fim; no instante mesmo em que era dito, um diligente assessor da presidência da Câmara agarrara o engenheiro pelo braço e, entre dentes, murmurou-lhe a única coisa que, para além de um interruptor defeituoso que fizesse colapsar o espectáculo, lhe podia ter estragado a fruição do triunfo:
- Senhor presidente, lamento ter de lhe dizer isto, mas está um corpo a boiar no rio.
(...)
Manuel Jorge Marmelo
Hoje o ponto alto das festas são-joaninas é na Ribeira com dois fogos de artifício. Um da margem direita e outro da margem esquerda. Perguntar-me-ão, «dois fogos, não podia ser só um?». Sim, podia ser só um, mas o fogo, sendo de artifício - tal como a divisão político-administrativa entre o Porto e Gaia - não tem em conta a realidade demográfica da região.
A propósito de fogos festivos e das suas envolventes, deixo aqui um excerto de um hilariante conto de Manuel Jorge Marmelo, retirado da colectânea Porto Ficção, publicada pelas Edições ASA em 2001, intitulado precisamente:
Fogo de Artifício
O senhor presidente da Câmara tinha garantido oitocentas e trinta e seis rebentações de pólvora sobre as águas turvas do Douro, em pirotecnia tradicional, e mais trezentas e vinte e sete explosões de fogo-de-artifício japonês, oferta especial à cidade, tudo acompanhado por vários milhares de decibéis de música épica e jogos de holofotes comandados por um computador inteligentíssimo, instalado do lado de lá do Douro.
Quando o último rojão se desfez no céu, as bocas do povo amontoado nas margens, ao longo de vários quilómetros, permaneciam escancaradas, tardando igualmente em dissipar-se dos olhos arregalados os reflexos das derradeiras fulgurações luminosas. Foi um foguetório lindo, que muitos garantiam ter sido o mais impressionante que a cidade alguma vez havia visto, e ninguém se espantará que a nenhum dos presentes tenha ocorrido a ideia de contar cada uma das rebentações dos petardos. Mesmo, porém, na remota possibilidade de alguém o ter feito, o mais certo é que ao minucioso espectador - algum invejoso da oposição! - tivesse escapado o estrondo que excedeu as mil cento e sessenta e três em que assentava a promessa do imponente edil, o qual há um ano e treze dias se debatia com o magno problema político do fogo-de-artifício e com a necessidade de provar ao mundo que os gajos do Porto são perfeitamente capazes de organizar escorreitamente um arraial popular.
Não fosse, contudo, o sucedido nos primeiros minutos do ano 2000 - e a paródia nacional em que se transformou o «reveillon» falhado dos tripeiros - e o líder da autarquia não se teria dado ao trabalho de confirmar cada um dos rebentamentos. Todavia, o estoiro supranumerário não deflagrou imediatamente no científico espírito do engenheiro uma centelha de estranheza que fosse, atribuindo-o antes a um gesto de cordialidade da empresa contratada para oficiar a romaria. Mil cento e sessenta e três ou mil cento e sessenta e quatro foguetes - que diferença fazia uma explosão a mais ou a menos? O que importava é que em duas semanas o Porto e as gentes no Norte mostraram ao mundo, com três formidáveis espectáculos de luz e cor - no «reveillon» 2001, na festa de Reis, ressuscitada por força do notável falhanço de 2000, e na abertura oficial da capital da cultura - que as más línguas melhor fariam se guardassem respeito ao invicto burgo. Ora tomem lá disto!
O edil fechou os olhos, acabou de bater as palmas com que se assinalou o fim da festa e desenhou nos lábios um sorriso à medida das circunstâncias, satisfeito e altivo, para lançar em redor e assim pôr no devido sítio os vários ministros e demais lisboetas que, às dezenas, tinham subido da capital com a secreta esperança de assistir ao vivo a mais um dos já proverbiais tropeções do orgulho tripeiro. Mas fosse porque o presidente do conselho de administração de uma empresa privada sustentada por fundos públicos se atreveu a dizer que
- Agora só era preciso que o vosso metro se fizesse enquanto o diabo faz estourar um foguete
ou por outro motivo qualquer, o certo é que o sorriso do autarca não durou muito tempo. Desvaneceu-se num pum! e deu lugar a um esgar de espanto, de terror até. O presidente do conselho de administração da empresa privada sustentada por fundos públicos temeu que fosse sua a culpa do sucedido - há piadas que devem ser guardadas para melhor altura e já houve casos de ministros demitidos por coisas assim. A causa do fim do sorriso era outra, porém, até porque o edil não chegou a ouvir o gracejo até ao fim; no instante mesmo em que era dito, um diligente assessor da presidência da Câmara agarrara o engenheiro pelo braço e, entre dentes, murmurou-lhe a única coisa que, para além de um interruptor defeituoso que fizesse colapsar o espectáculo, lhe podia ter estragado a fruição do triunfo:
- Senhor presidente, lamento ter de lhe dizer isto, mas está um corpo a boiar no rio.
(...)
Manuel Jorge Marmelo
23 junho 2005
22 junho 2005
A não perder
Os tradicionais barcos rabelos, que durante séculos transportaram rio abaixo tudo o que o Alto Douro produzia, fruirão de um sopro de vida na regata que partirá da Afurada para a Ponte Luís I, às 13h00 do dia de S. João. Uma oportunidade única para apreciar estas elegantes embarcações, de velas soltas ao vento, a deslizar lentamente sobre as águas do Douro.
Aqui, na Cidade Surpreendente, abordarei em breve "A Arquitectura do Rabelo", título de um estudo do arquitecto Octávio Lixa Filgueiras que serviu como roteiro para um filme documentário, do qual publicarei algumas imagens e textos.
20 junho 2005
Já cheira a S. João
Noite de Sexta-Feira passada em Lordelo do Ouro
Pela parte que me cabe nunca chamarei churros às farturas apesar de o vocábulo castelhano ter já entrado no léxico português com essa acepção. Até aqui, churro, na língua de Camões, significava apenas sórdido, sujo, imundo, longe portanto do conceito das doces e douradas farturas.
E no lugar de churraria, não estaria, antes de se terem mudado os tempos e as vontades, qualquer coisa como Cristina das Farturas?
Deixemo-nos de coisas menores. O importante é que a Primavera, revelada pelo Equinócio de Março, está em pleno declínio e o Solstício de Verão está aí fogoso, à porta, com o dia mais longo do ano a anunciar a grande festa tripeira, a noite de S. João.
Pela parte que me cabe nunca chamarei churros às farturas apesar de o vocábulo castelhano ter já entrado no léxico português com essa acepção. Até aqui, churro, na língua de Camões, significava apenas sórdido, sujo, imundo, longe portanto do conceito das doces e douradas farturas.
E no lugar de churraria, não estaria, antes de se terem mudado os tempos e as vontades, qualquer coisa como Cristina das Farturas?
Deixemo-nos de coisas menores. O importante é que a Primavera, revelada pelo Equinócio de Março, está em pleno declínio e o Solstício de Verão está aí fogoso, à porta, com o dia mais longo do ano a anunciar a grande festa tripeira, a noite de S. João.
17 junho 2005
No Muro dos Bacalhoeiros
Olhando as casas de cores quentes, estreitas e altas, com janelas amplas e varandas extensas, voltadas para o rio.
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