08 março 2006

Da Urbe e do Burgo - IV

Regressamos às crónicas de Sant'Anna Dionísio respigando excertos de um conjunto de comentários da actualidade de então, publicados com o título Perspectivas do Douro. Repare-se no matiz da escrita, na visão tão particular do autor e na sua preocupação com o futuro da urbe. Futuro que, tanto para o centro histórico do Porto como para aquilo que S.D. designava como «interland rústico» da cidade, se revelou desastroso. No centro a ruína permanente, na periferia o caos urbanístico.
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Perspectivas do Douro

«Rara será a cidade, seja qual for o continente em que for procurada, que possa apresentar tão impressionantes flancos, tão propícios à realização de uma grandiosa obra de urbanismo, arquitectónico e paisagístico, como esta oferecida à imaginação de qualquer bom observador, desde o promontório de Nova Sintra até às proximidades da Foz.



Logo de começo, é o formidando duplo barranco compreendido entre as duas ciclópicas pontes metálicas, lançadas com grande arrojo sobre o rio nos fins do terceiro quartel do século passado. O sítio é único no mundo. Numa extensão de mil metros, o rio corre entre duas colossais ravinas, quase perpendiculares, de trinta braças de fundo.



Do lado do sul, é o despenhadeiro da serra do Pilar - irrisória como serra, mas ciclópica como paredão de um canal carrancudo e disforme. Do lado do norte é o fraguedo, cortado quase a prumo, que vai desde a ravina dos Guindais ao barranco do antigo Seminário».


(...)
«Tanto ou mais do que a cidade de Lisboa, a cidade do Porto, em pleno e anárquico crescimento, está a pedir, em silêncio, há mais de meio século, uma obra de aglutinação municipal imprescindível e, no fim de contas, extremamente simples. Queremos referir-nos à necessidade de ser convertido num só município, devidamente disciplinado e controlado, que abrangeria os actuais âmbitos urbanizantes do Porto, Matosinhos, Maia, Condomar, Valongo, Gaia. Assim se poderia traçar e orientar um grande e decisivo plano de expansão, arrumação, circulação e embelezamento que não existe e cuja falta prolongada além dos limites razoáveis tem, já hoje, como consequência funesta (em muitos sectores e casos, de dificílima correcção) a estratificação de erros sobre erros, que já nos meados do século XVIII eram objecto do lucidíssimo olhar do Almada, Velho (D. João de Almada), na impressiva e discreta missiva-relatório endereçada ao Marquês de Pombal, seu parente.

Como é possível, com efeito, que o núcleo periférico de Leixões não tenha sido considerado, administrativamente, desde a criação do porto artificial do Porto, como um bairro da própria cidade que determinou a sua construção?
E como compreender que o aglomerado contíguo e fronteiro de Vila Nova de Gaia (uma vez extinta a longínqua motivação da alforria medieva) não esteja ainda hoje incluído no círculo de urbanização da Cidade de que ela, a vila, é um patente e simples bairro?
São anomalias que não se entendem».


(...)
«Francisco de Holanda, arquitecto, esteta e pintor, há já cinco séculos, a propósito das deficiências que notava na cidade de Lisboa ao chegar ao estuário do Tejo com os olhos ainda cheios do encanto da dignidade arquitectónica das cidades italianas, consagrou algumas reflexões a esse assunto, sugerindo algumas ideias e obras capazes de preencher esses vazios.

Sem querermos cair em mimetismos, sempre antipáticos e merecedores de mofa, entendemos que não será descabido tentar solicitar a atenção - como se costuma dizer: "de quem de direito" - para a urgência de se estudar a fundo alguns graves "senãos" da velha cidade do estuário do Douro no sentido de se fazer dela algo digno do que, nos dois séculos anteriores, nela se realizou no plano de autêntica urbanização e valorização panorâmica.
A cidade, tal qual está e tende a expandir-se, parece querer fugir ao rio donde nasceu e esquecer o empolgante cenário que lhe imprime o seu mais genuíno perfil.

Está bem que o casario moderno, funcional ou não funcional, se dilate na direcção do antigo interland rústico da Areosa, da Asprela, de Francos, mas que não se perca de vista o eixo fundamental da grandiosa linha de alcantis sobranceiros ao rio. Essa é e deverá ser sempre a alma da cidade e, como tal, requer que os seus mais dedicados urbanizadores lhe consagrem os preciosos momentos de imaginação criadora».
(...)
«A cidade nascida do grandioso rio tem de lhe ser fiel, modelando-lhe os flancos e tornando-os ainda mais impressivos. Pois que é "urbanizar" senão adquirir ainda mais fisionomia, sem prejuízo da fisionomia fundamental já adquirida?».

14 comentários:

CARMO disse...

Fantástico post. Além de ter aprendido bastante, não podia estar mais de acordo. Será que o Sr. Rui "Rio" conhece estes textos?!

Sinapse disse...

Gostei particularmente da fotografia dos telhados Calem - inusitada perspectiva :)

patchouly disse...

Belissimo post, de uma actualidade que impressiona. Por vezes custa olhar-mo-nos no espelho da história e aperceber-mo-nos que as causas remotas para os problemas que temos hoje persistem e se agravam dia a dia. Ainda iremos a tempo de arrepiar caminho? Salve-se, ao menos, o Rio Douro e as suas marginais...

Anónimo disse...

Por que eu vivo procurando
Um motivo de viver
Se a vida às vezes parece de mim esquecer.
Procuro em todas, mas todas não são você
Eu quero apenas viver
Se não for para mim, que seja pra você
Mas as vezes você parece me ignorar
Sem nem ao menos me olhar
Me machucando pra valer
Atrás dos meus sonhos eu vou correr
Eu vou me achar, pra mais tarde em você me perder.
Se a vida dá presente pra cada um

O Amigo do Café disse...

Cada vez que cá venho sinto-me outro. Obrigado.

sl disse...

já então o que se consideraria uma metrópole, aqui se encontravam, como agora, uma amalgama de virtudes e defeitos urbanos e humanos. O caos é e será sempre uma inevitabilidade do processo de desenvolvimento de um território, sendo por isso a disciplina do planeamento urbano ou regional crucial no alcance do equilíbrio entre o ideal e o existente. Antes como agora se percebe a necessidade de cooperar de alargar as atitudes de governabilidade para além dos territórios administrativos, acabar com a cultura do bairrismo doentio a que assistimos diariamente.
O rio flúi desde a nascente até à foz, é de todos e para todos... com ele deveríamos aprender para melhor criar espaços de vivência colectiva na cidade

th disse...

PASSEI E ENCANTEI, COMO DE COSTUME.
Abraço, th

Freddy disse...

O dia em q fizerem um blog sobre Matosinhos e o seu urbanismo, vai ser mesmo demais...;)

César disse...

Queria so deixar aqui os meus parabens!! esta um blog espectacular, e acrescentei aos meus favoritos!! exelente trabalho!!!
Força e um abraço de um grande portuense, com mt orgulho!! :D

isabel mendes ferreira disse...

Carlos odeio dizer isto:










AMO AMO AMO isto!


b e i j o .

isabel mendes ferreira disse...

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para dizer fidelidade!_____________

Anónimo disse...

Nestas águas ainda é possível tomar um banho de inteligência!...
Fiquei mais limpo, obrigado.

JC disse...

caro Carlos gostei especialmente da vertigem sobre os telhados, e de facto Francisco de Holanda tinha razão!

Dulce Gabriel disse...

Xiii.Tantas saudades dos momentos mágicos que já viví nessa cidade.