26 julho 2006

O vitral da casa dos sonhos



Oh as casas as casas as casas
as casas nascem vivem e morrem
Enquanto vivas distinguem-se umas das outras
distinguem-se designadamente pelo cheiro
variam até de sala pra sala
As casas que eu fazia em pequeno
onde estarei eu hoje em pequeno?
Onde estarei aliás eu dos versos daqui a pouco?
Terei eu casa onde reter tudo isto
ou serei sempre somente esta instabilidade?

(...)

A casa a que pertenceu o vitral acima, não caberia no poema de Ruy Belo. Não era daquelas que explicam que exista uma palavra como intimidade, referidas pelo poeta. Pelo contrário, era um lugar de espectáculos públicos que se terá cruzado com a poesia à sua maneira, no domínio dos sonhos.

Muitos de nós se lembrarão do Cinema Trindade, do seu enorme ecrã para filmes de 70mm. Do 1º Balcão espaçoso a meia altura da sala, que permitia usufruir plenamente do espectáculo cinematográfico. Do som estereofónico. Outros recordarão as sessões matinais do Cineclube do Porto, aos Domingos, e os concertos de jazz quando a marinha americana passava por Leixões.

A programação do Trindade estava então a cargo de um homem culto, apaixonado pelo cinema, elemento destacado do Movimento Cineclubista e opositor do regime vigente: Luís Neves Real.
A ele se deve a abertura do Batalha Bebé em 1976, em plena democracia, para aí exibir filmes de menor audiência, como reacção ao já então anunciado êxodo de espectadores, que determinou o encerramento do Trindade em 1989. Do interior do edifício resta o vitral, a lembrar a abertura daquele espaço em 1913 e também para que não sejamos somente... instabilidade.

Oh as casas as casas as casas
as casas nascem vivem e morrem
...

_______________

28 Julho 2006

Como adenda, porque é um excelente suplemento a esta entrada, transcrevo o comentário de Denudado, autor do do blogue A Matéria do Tempo, que me atrevo a intitular:

O Mundo Sonoro de Jorge Peixinho no Cinema Trindade

A referência ao som estereofónico da sala do Cinema Trindade acendeu em mim uma recordação.

Era no Trindade que a Juventude Musical Portuguesa organizava alguns dos seus concertos, a que eu assistia na minha qualidade de sócio da instituição.
Assisti uma vez, não exactamente a um concerto, mas antes a um recital de piano, em que o grande compositor português de vanguarda Jorge Peixinho (já falecido, infelizmente) interpretou algumas obras da sua autoria.

Uma dessas obras chamava-se, salvo erro, Harmonias II ou Harmonias III. Para interpretá-la, Jorge Peixinho tinha um microfone junto do piano, o qual estava ligado a um gravador de bobina; a este gravador seguiam-se mais 3 outros gravadores, todos perfeitamente alinhados uns pelos outros. Uma fita magnética saía do primeiro gravador e passava directamente pelas cabeças de leitura dos gravadores seguintes, só sendo enrolada pelo último gravador de todos.

O primeiro gravador (o que tinha o microfone) registava na fita magnética o que Jorge Peixinho tocava. Um ou dois segundos mais tarde, a mesma música era reproduzida pelo primeiro gravador, o qual estava ligado às colunas laterais da sala que estavam mais à frente. A seguir (com mais um atraso temporal de 1 ou 2 segundos), ela era reproduzida pelo 2º gravador, o qual estava ligado aos altifalantes laterais do meio da sala. Por fim, a fita era reproduzida, 1 ou 2 segundos mais tarde, pelo 3º gravador, o qual estava ligado às colunas laterais do fundo da sala.

Resultou de toda esta montagem que o público ouvia primeiro as notas tocadas no piano, vindas directamente do palco. De imediato, as mesmas notas avançavam pela sala fora, como uma verdadeira onda sonora, da frente para trás, à medida que iam sendo emitidas pelas colunas da sala.

O resultado não podia ser mais magnífico. O avanço da música pela sala, em ondas, e a interacção harmoniosa que ela fazia consigo própria, fez daquele recital um espectáculo verdadeiramente inesquecível. Foi no Trindade.

12 comentários:

Authors disse...

uma explosao de luz e sombras viram os meus olhos quando inda agora abri o blog. magnifico:)

Lis disse...

Parabéns.
Lis

Teófilo M. disse...

Reconheci-os à primeira, mas a tristeza invadiu-me, pois aquele local merecia mais... muito mais.

Pena é, que a cidade continue de costas voltadas para o seu passado, e que continue a resistir em olhar para a frente para o seu futuro preferindo olhar apenas embevecidamente para o seu umbigo.

Um abraço

Teófilo M.

Fernando Ribeiro disse...

A referência ao som estereofónico da sala do Cinema Trindade acendeu em mim uma recordação.

Era no Trindade que a Juventude Musical Portuguesa organizava alguns dos seus concertos, a que eu assistia na minha qualidade de sócio da instituição.

Assisti uma vez, não exactamente a um concerto, mas antes a um recital de piano, em que o grande compositor português de vanguarda Jorge Peixinho (já falecido, infelizmente) interpretou algumas obras da sua autoria.

Uma dessas obras chamava-se, salvo erro, Harmonias II ou Harmonias III. Para interpretá-la, Jorge Peixinho tinha um microfone junto do piano, o qual estava ligado a um gravador de bobina; a este gravador seguiam-se mais 3 outros gravadores, todos perfeitamente alinhados uns pelos outros. Uma fita magnética saía do primeiro gravador e passava directamente pelas cabeças de leitura dos gravadores seguintes, só sendo enrolada pelo último gravador de todos.

O primeiro gravador (o que tinha o microfone) registava na fita magnética o que Jorge Peixinho tocava. Um ou dois segundos mais tarde, a mesma música era reproduzida pelo primeiro gravador, o qual estava ligado às colunas laterais da sala que estavam mais à frente. A seguir (com mais um atraso temporal de 1 ou 2 segundos), ela era reproduzida pelo 2º garvador, o qual estava ligado aos altifalantes laterias do meio da sala. Por fim, a fita era reproduzida, 1 ou 2 segundos mais tarde, pelo 3º gravador, o qual estava ligado às colunas laterais do fundo da sala.

Resultou de toda esta montagem que o público ouvia primeiro as notas tocadas no piano, vindas directamente do palco. De imediato, as mesmas notas avançavam pela sala fora, como uma verdadeira onda sonora, da frente para trás, à medida que iam sendo emitidas pelas colunas da sala.

O resultado não podia ser mais magnífico. O avanço da música pela sala, em ondas, e a interacção harmoniosa que ela fazia consigo própria, fez daquele recital um espectáculo verdadeiramente inesquecível. Foi no Trindade.

th disse...

Para além das soberbas fotografias, do cuidado estudo do tema e aturada pesquisa, ficará para sempre na nossa lembrança, pelo menos na minha, este encontro com a Cidade, às quartas-feiras.
Obrigada meu amigo.
Um beijo desta fã e admiradora incondicional, theo

azuki disse...

bonito

Karl Macx disse...

Bem, tantas recordações...
Foi nesse espaço que abri a minha mente a novos mundos e a novas perspectivas. Foi no Trindade que vi os meus dois primeiros filmes: Conan, o Bárbaro (com um Schwarzenneger muito incipiente...) e os Caça-Fantasmas...
São mesmo muitas e antigas recordações. Obrigado por me ter feito rebuscar os cantos mais recônditos da minha memória e da memória colectiva da cidade.

rps disse...

É, deixa saudades, o Trindade, como todos os espaços que vão fechando. É inexoravel, o tempo. Nunca vi, no Trindade, nenhum espectáculo à excepção de cinema. Mas tenho a sensação que, na minha adolescência, entre a segunda metade de 70 e a primeira de 80, foi das salas onde mais filmes vi.
E já não me lembrava do vitral. Por isso, obrigado caro CR.

Anónimo disse...

Olá Carlos!

Embora pareça que ando ausente, visito com regularidade a "Cidade Surpreendente", onde admiro as suas fotos,as pesquisas que faz para as documentar e a sua sensibilidade. Parabéns por dar a conhecer através dos seus olhos, a nossa bela cidade, que apesar dos maus tratos de que tem sido vítima, continua a fascinar quem bem a conhece e ama.
Também eu vi o meu 1º filme no Cinema Trindade. Eu tinha 11 anos e o filme era para 12, pelo que tive de levar a cédula pessoal de uma vizinha, para poder ver o filme. E não é que o porteiro até me perguntou o nome dos meus pais para confirmar? Eu é que já levava a lição na ponta da língua, senão nada feito.
Tenho muitas saudades dos cinemas, dos cafés e de tudo o que dava vida à nossa cidade...
Bj Isabel Amado

CARMO disse...

Obrigado pela história do vitral. Fantástico!

augustoM disse...

Do mesmo mal enfermamos aqui ao Sul.
Um abraço. Augusto

Anónimo disse...

É sempre um imenso prazer estético vir olhar teu espaço!
E desta vez ler o 'teu sentir o Porto' acompanhado de literatura e de músca.

Três aspectos prenderam minha sensibilidade:
a beleza inominável da fotografia do vitral [q 'pecado' destruir em lugar de recuperar];
o poema de Ruy Belo [lindo e sensível, como só ele];
Jorge Peixinho [uma referência na minha memória poética].
Um precursor mal-amado,como todos os 'vanguardistas' em qq época!
Ambos, Ruy Belo e Jorge Peixinho, desaparecidos tão precocemente.

saudações