Regressamos às crónicas de Sant'Anna Dionísio respigando excertos de um conjunto de comentários da actualidade de então, publicados com o título Perspectivas do Douro. Repare-se no matiz da escrita, na visão tão particular do autor e na sua preocupação com o futuro da urbe. Futuro que, tanto para o centro histórico do Porto como para aquilo que S.D. designava como «
interland rústico» da cidade, se revelou desastroso. No centro a ruína permanente, na periferia o caos urbanístico.
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Perspectivas do Douro
«Rara será a cidade, seja qual for o continente em que for procurada, que possa apresentar tão impressionantes flancos, tão propícios à realização de uma grandiosa obra de urbanismo, arquitectónico e paisagístico, como esta oferecida à imaginação de qualquer bom observador, desde o promontório de Nova Sintra até às proximidades da Foz.
Logo de começo, é o formidando duplo barranco compreendido entre as duas ciclópicas pontes metálicas, lançadas com grande arrojo sobre o rio nos fins do terceiro quartel do século passado. O sítio é único no mundo. Numa extensão de mil metros, o rio corre entre duas colossais ravinas, quase perpendiculares, de trinta braças de fundo.
Do lado do sul, é o despenhadeiro da serra do Pilar - irrisória como serra, mas ciclópica como paredão de um canal carrancudo e disforme. Do lado do norte é o fraguedo, cortado quase a prumo, que vai desde a ravina dos Guindais ao barranco do antigo Seminário».
(...)
«Tanto ou mais do que a cidade de Lisboa, a cidade do Porto, em pleno e anárquico crescimento, está a pedir, em silêncio, há mais de meio século, uma obra de aglutinação municipal imprescindível e, no fim de contas, extremamente simples. Queremos referir-nos à necessidade de ser convertido num só município, devidamente disciplinado e controlado, que abrangeria os actuais âmbitos urbanizantes do Porto, Matosinhos, Maia, Condomar, Valongo, Gaia. Assim se poderia traçar e orientar um grande e decisivo plano de expansão, arrumação, circulação e embelezamento que não existe e cuja falta prolongada além dos limites razoáveis tem, já hoje, como consequência funesta (em muitos sectores e casos, de dificílima correcção) a estratificação de erros sobre erros, que já nos meados do século XVIII eram objecto do lucidíssimo olhar do Almada, Velho (D. João de Almada), na impressiva e discreta missiva-relatório endereçada ao Marquês de Pombal, seu parente.
Como é possível, com efeito, que o núcleo periférico de Leixões não tenha sido considerado, administrativamente, desde a criação do porto artificial do Porto, como um bairro da própria cidade que determinou a sua construção?
E como compreender que o aglomerado contíguo e fronteiro de Vila Nova de Gaia (uma vez extinta a longínqua motivação da alforria medieva) não esteja ainda hoje incluído no círculo de urbanização da Cidade de que ela, a vila, é um patente e simples bairro?
São anomalias que não se entendem».
(...)
«Francisco de Holanda, arquitecto, esteta e pintor, há já cinco séculos, a propósito das deficiências que notava na cidade de Lisboa ao chegar ao estuário do Tejo com os olhos ainda cheios do encanto da dignidade arquitectónica das cidades italianas, consagrou algumas reflexões a esse assunto, sugerindo algumas ideias e obras capazes de preencher esses vazios.
Sem querermos cair em mimetismos, sempre antipáticos e merecedores de mofa, entendemos que não será descabido tentar solicitar a atenção - como se costuma dizer: "de quem de direito" - para a urgência de se estudar a fundo alguns graves "senãos" da velha cidade do estuário do Douro no sentido de se fazer dela algo digno do que, nos dois séculos anteriores, nela se realizou no plano de autêntica urbanização e valorização panorâmica.
A cidade, tal qual está e tende a expandir-se, parece querer fugir ao rio donde nasceu e esquecer o empolgante cenário que lhe imprime o seu mais genuíno perfil.
Está bem que o casario moderno, funcional ou não funcional, se dilate na direcção do antigo
interland rústico da Areosa, da Asprela, de Francos, mas que não se perca de vista o eixo fundamental da grandiosa linha de alcantis sobranceiros ao rio. Essa é e deverá ser sempre a alma da cidade e, como tal, requer que os seus mais dedicados urbanizadores lhe consagrem os preciosos momentos de imaginação criadora».
(...)
«A cidade nascida do grandioso rio tem de lhe ser fiel, modelando-lhe os flancos e tornando-os ainda mais impressivos. Pois que é "urbanizar" senão adquirir ainda mais fisionomia, sem prejuízo da fisionomia fundamental já adquirida?».