24 maio 2005

Entre o Passeio Alegre e o Ouro

A crónica abaixo, de Luísa Dacosta, foi publicada na revista Máxima em 1992. De então para cá muita coisa mudou entre o Passeio Alegre e o Ouro. O eléctrico da linha 1, já não corre pela marginal com o sorriso Colgate estampado no rosto. Parece lento e cansado, agora que se desloca ronceiro e quase sem passageiros no trilho que partilha com os peões.
A língua de areia do Cabedelo, perdeu a magia há semanas com o início da construção dos polémicos molhes do Douro.
Também já não há dorsos curvados na apanha da bicha para o isco, nem miúdos a brincar livremente no jardim do Cálem. A Europa que trouxe a remodelação da marginal retirou-lhe o tipicismo.
Do conjunto de árvores de grande porte do Ouro, restam poucos exemplares, sobreviventes desesperados da política arboricida municipal, e até o estaleiro naval do Ouro está com um ar abandonado e decadente.
A marginal, contudo, não perdeu o encanto. Continua a valer a pena percorrê-la a pé, de bicicleta ou de eléctrico.



Tarde de Verão

«Apesar da massa das árvores, do jacto empoado de luz do repuxo, o calor pesa e amodorra o jardim. Espero o eléctrico e olho a linha do casario a alterar-se. Por isso o meu olhar se prende preferencialmente a duas casas: a que se segue à Rua das Laranjeiras com o seu rosa bolo-de-aniversário, bordado pelo branco das varandas e beiral, chovido em recorte como franja de chalinho que aconchegasse os telhados de duas águas e aquela outra de majestade antiga, vedada por altos portões de ferro, com seu jardim de palmeiras, suas varandas-terraços de deck de navio, seus mirantes, seus telhados, preciosos, como caixas nepalesas.





O calor continua e o que nos refresca é a lembrança do que não se vê: a língua de areia do Cabedelo, os barquinhos na faina, o Brasil, pequenino e breve, da avenida das palmeiras, a quietude das canas de pesca, à espera que o peixe morda, o musguento das pedras descobertas pela maré vaza.



Felizmente aparece, festivo, o eléctrico: amarelo e rosa com aquele estampado largo e achatado sorriso Colgate, para toda a vida. Toca a entrar! Deixada para trás a casa mais íntima e maneirinha do Passeio Alegre: a do poeta Rebordão Navarro, como que ajoelhada para melhor beber o encontro do rio e do mar, paramos na Cantareira, os barquinhos, presos ao paredão por longas cordas, como gadinho que não se quer extraviado. Que nome lindo e cantante! Cantareira, porquê? Porque as casas se dispõem amorosamente como os caquinhos nas cantareirinhas de brincar? Assim o dá a entender Raul Brandão: "As casas, limpas como o convés do navio, espreitavam para o mar, umas por cima das outras".





Vamos ao rés do rio. Do lado da terra casinhas baixas de porta e janela, a vida sobrante das roupas que não cabem de portas adentro em frente a acenar a deuses à outra margem, ainda a retalhos, mítica e frondosa de verdes espessos. Nas margens lodosas, floridas de asas brancas, há dorsos curvados na apanha da bicha para o isco. E começa o jardim do Cálem, com os antigos canhões de ferro, poleiro e regalo de pombas, gaivotas e meninos.



Na paragem, que dá acesso à Pasteleira, a capela de Santa Catarina espreita lá de cima do seu mirante, ainda aldeão. Continuamos na intimidade do rio, sob a massa pujante de tílias e plátanos: é o estaleiro do Ouro, onde o "Mar Pacífico" renova o cavername e o "Leixões" aguarda pintura. E, súbito, à esquerda: escadinhas, chafariz e mictório. Paragem do Ouro. Há freguesia para atravessar para a Afurada, que desce em presépio até às águas como se se preparasse para embarcar no rebanho de traineiras, que não se fez à faina. A "Flor do Gaz" já vem a meio da corrente de reflexos quebrados pela ondulação. Não tardará a atracar.»

Luísa Dacosta

16 comentários:

kiko disse...

Sempre na base da qualidade! Imagfesn sugestivas e textos esclarecedores!

Anónimo disse...

Foi durante estes 4 meses o meu olhar sobre o Porto...

da Rússia, com saudade desse teu cantinho que também é meu

Poor disse...

aha, esta é a minha zona!Só falta a foto da flor do gaz, esse meio de transporte mítico!:)
mais um excelente trabalho carlos!

Pedro Estácio disse...

Carlos,

Deixei-me dizer-lhe que o seu blog é SIMPLESMENTE FANTÁSTICO.
Um GRANDIOSO tributo à nossa Mui Nobre, Sempre LEAL e INVICTA Cidade do P O R T O.
Os meus sinceros Parabéns !

Abraço

isabel mendes ferreira disse...

Carlos, à minha ADMIRAÇÃO pelo seu talento plástico-sensitivo junto a saudade.um beijo.

isabel mendes ferreira disse...

Viva obrigado pela "viagem ao sul".beijo.

Anónimo disse...

Obrigada Carlos. Muito e muito obrigada por me fazeres, post após post, reviver o Porto de onde tenho tantas saudades. Fico sempre nostálgica quando aqui venho. Nostálgica mas com um sorriso no rosto.

António Conceição disse...

Porque é que este senhor Carlos Romão continua a tirar fotografias que, para lá de muito belas, são verdadeiros poemas e eu, nos mesmos lugares, só saco porcarias?
Continuo a achar que deve ser da máquina. Um dia destes descubro onde ele mora e vou lá a casa roubar-lha.
Agradecer-lhe a felicidade destes olhares?
Claro que não! Não me rebaixo a tal. Aliás este trabalho está incompletíssimo. Como salientou um comentador anterior, A "Flor do Gaz"? Onde está a "Flor do Gaz"?

Frankenstakion disse...

Realmente consegues captar imagens que são autênticos postais ilustrados...
Devias ser convidado para trabalhar em turismo que aumentavam, de certeza, as visitas à nossa cidade.
Parabéns mais uma vez!!!

Rogério Santos disse...

Espero que continue a deliciar-nos com as suas imagens e textos (nem que sejam de autores que escreveram sobre o Porto). Dá vontade de percorrer os lugares e voltá-lo a fazer. Faltam mesmo os sons e os cheiros, mas podemos imaginá-los.

Anónimo disse...

Concordo e assino embaixo de todos os comentários ja publicados e outros tantos que sei virão cá pra enaltecer a capacidade sensitiva , poética e de uma estética impar que tu, Carlos tens. Fico a sorrir e meu dia fica melhor todas as vezes que cá venho. Como já disse anteriormente tou a contar os dias para estar no Porto e, Carlos prometestes mostar a cidade, ser meu guia.Um abraço desta tua amiga brasileira de São Paulo, aliás....luso brasileira, pois tenho tb sangue luso e com muito orgulho!
Beatriz

Unknown disse...

Que MAGIA! Mas realmente tenho que subscrever alguns dos comentários acima. A minha máquina fotográfica tb deve ter algum problema, LOL. Fiquei fascinado com o pormenor da "Cantareira". E o eléctrico é mágico. Tantas viagens fiz nesse meio de transporte. Sugiro uma visita ao Museu do Carro Eléctrico. Mais uma vez, os meus parabéns!
Hugzzz

Miguel Gonçalves disse...

Tomei a liberdade de colocar uma das vossos fotos no meu blog (com indicação da fonte, link e comentário ao vosso blog!!)! Sou um amante do Porto e tenho o previlégio de viver e trabalhar no nosso pedaço de Paraíso!

Obrigado por existirem e por mostrarem ao Mundo que a tranquilidade de espírito também se alcança numa grande cidade!

Anónimo disse...

Do Porto tenho retidas imagens de 3 ou 4 dias que por aí passei,já lá vão mais de 30 anos.Fui para aí com a cidade rotulada de "feia,suja e sem graça,comparativamente a Lisboa"
Digo-lhe que nunca me mentiram com tanto descaramento.O Porto é diferente,belo,apetecido. Visto pelos seus olhos e registado pela sua "máquina" o encanto aumenta até nos deixar sem respiração...
O seu "cantinho" na "blog" é um prazer imenso para o meu espirito.
Obgº.Amigo
JCPereira

isabel mendes ferreira disse...

prontos lá estou eu a viajar até ao Porto para dizer que o espero em Piano/lisboa para fazer uma escolha num puzle que por lá deixei. boa viagem. e um beijo perto.

Unknown disse...

Puxa ... O Porto, minha cidade de criação é retratada aqui duma forma sublime. Agora que fui adoptado por uma outra cidade no sul do Brasil, fico na expectativa que apareça outro poeta da imagem com a mesma sensibilidade de forma a completar o meu album de imagens