27 junho 2011

As ruas presas às rodas

António Rebordão Navarro


«Estou sozinho na praça ao fim da Avenida Marechal Gomes da Costa, soterrado sobre as movediças areias de um tempo que passou, se é que passa e não constitui uma mera ilusão, como proclamariam alguns pensadores da Idade Média, quando uma voz emitida pelo rádio da central me manda seguir a toda a pressa para a Praça Gonçalves Zarco, onde ocorre qualquer anormalidade com outro taxi.
Acelero pela Avenida da Boavista abaixo, entre velhos solares abandonados que vão perdendo nas degradadas imagens o respeito por si próprios, jardins que se tornaram vastas matas tapando as moradias, prédios novos, de linhas rectilíneas, árvores fugindo à velocidade. Surge a sombra da estátua equestre no meio da rotunda e, ao fundo, soterrado, após as obras da capital da cultura, revolvendo, transformando a cidade, o Castelo do Queijo, forte costeiro cuja origem do nome sempre me escapou, do qual despontam submersos na bruma os torreões.



Sobre o espaço onde se erguera o Colégio Luso-Francês cujo prédio fora por muitos anos afecto à Companhia Carris e ultimamente demolido para, como constava, se edificar um dancing, o que não chegou a acontecer, ali permanecendo só uma ruína, na nova via ligando o Castelo do Queijo à estrada da Circunvalação e à horrenda fronteira sul de Matosinhos; defronte ao edifício transparente, construção de vidros e de poucas paredes, entre a praia e o termo do parque da cidade, mastodonte imponente e de elevados custos, projectado para zona de lazer, um elefante branco que ninguém ousava explorar, era só ocupado pelos ventos, o pó, as areias e a chuva, está um velho taxi parado de capot aberto fumegando. Inclinado sobre ele, como cana de pesca vergada pelo peixe, com os bigodes brancos e pendentes, as mãos esguias, trémulas, negras de óleo, a eterna bata sempre usada em serviço, cinzenta como o céu que nos cobria, o Jeremias Paredes, que na verdade se chamava Carneiro, mas por ser natural de Paredes de Coura, povoação que, saudoso, evocava, estava sempre a superlativar, considerava incomparável, por Paredes seria conhecido e tratado. Era dos mais idosos, talvez o mais antigo motorista de praça da cidade e, a seu lado, nervoso, com uma bela malinha de fino couro na mão direita, a gabardina branca, tão bem dobrada e rígida que parecia sólida, que parecia alva, uniforme mancha pintada numa tela, pendendo do antebraço esquerdo, cheviote de trespasse, gravata regimental, camisa clara, um sujeito estrangeiro invectivava-o, queixando-se do atraso, mirando e remirando o relógio de pulso, declarando num português mascavado, muitas vezes incompreensível, que não podia perder o avião, que fazia, que acontecia. Não lhe liguei ponta de corno. Perguntei ao Jeremias o que se passava. Desanimado, ele contou que fora ao hotel buscar o americano para o conduzir ao aeroporto, o carro começara a deitar fumo, a resfolgar, queimara-se a colaça, recorrera à central para mandarem um colega, enquanto o cliente não cessava de protestar. Das janelas de autocarros quase vazios, alguns viajantes observavam a cena de relance. Dois operários de bicicleta abrandariam um pouco ao passarem ali. Uns catraios ranhosos, hirsutos, friorentos, talvez vindos da praia, rodearam o estrangeiro, pedindo-lhe esmola, de mãos estendidas e sujas. Foram corridos com um berro do Paredes. Tens de mudar de carro, disse-lhe eu. Este já deu o que tinha a dar, e prestei-me a conduzir o irado cliente. O meu colega fechou com estrépito o capot, resmungou, vencido: «É muito tarde. Este morre comigo ou eu com ele. Vou voltar para a terra». O americano nunca mais se calava. Que isto era um país muito atrasado, que não podia perder o avião, que se queixaria ao consulado, ao Governo Civil, à embaixada, ao Ministro dos Negócios Estrangeiros, que pediria responsabilidades, exigiria indemnizações, desculpas, o diabo. Aturei-o quase metade do caminho e perdi, de repente, a paciência. Vibrei uma bruta palmada no volante que me fez doer toda a mão e gritei-lhe, furioso: «Shut-up!», que eram as únicas palavras em inglês, por certo aprendidas nos filmes de cowboys ainda não denominados western, que eu sabia. O cavalheiro nunca mais abriu bico e até, honra lhe seja feita, me premiou com choruda gorjeta.
Nunca mais soube do Jeremias Paredes. Talvez o carro fosse para a sucata e ele regressasse à sua terra.»

Edições Afrontamento, Março 2011

6 comentários:

pbl disse...

Bonito!
Melancólico, mas ainda assim bonito.

Duarte disse...

Um texto com matizes que nos conduzem à nostalgia, numa linguagem bem cuidada.
Obrigado pela divulgação.
Gostei.
Abraços

Unknown disse...

Belíssimo texto

Teófilo M. disse...

Um naco de prosa suculento e visato por olhos que vêm a realidade do envelhecer deste nobre burgo que diariamente vai sendo aviltado em nome de um progresso que mais parece um retrocesso civilizacional.

Anónimo disse...

Andei no colégio luso-francês. Podia dedircarme a confirmar este facto mas tenho pressa: acho que o colégio que ali se situava era o CLIP, não o Luso-Francês

Carlos Romão disse...

Era, de facto, o CLIP, o Colégio Internacional do Porto mas o lapso perdoa-se ao autor. O texto é de ficção e vale por si.