António Rebordão Navarro
«Estou sozinho na praça ao fim da Avenida Marechal Gomes da Costa, soterrado sobre as movediças areias de um tempo que passou, se é que passa e não constitui uma mera ilusão, como proclamariam alguns pensadores da Idade Média, quando uma voz emitida pelo rádio da central me manda seguir a toda a pressa para a Praça Gonçalves Zarco, onde ocorre qualquer anormalidade com outro taxi.
Acelero pela Avenida da Boavista abaixo, entre velhos solares abandonados que vão perdendo nas degradadas imagens o respeito por si próprios, jardins que se tornaram vastas matas tapando as moradias, prédios novos, de linhas rectilíneas, árvores fugindo à velocidade. Surge a sombra da estátua equestre no meio da rotunda e, ao fundo, soterrado, após as obras da capital da cultura, revolvendo, transformando a cidade, o Castelo do Queijo, forte costeiro cuja origem do nome sempre me escapou, do qual despontam submersos na bruma os torreões.
Sobre o espaço onde se erguera o Colégio Luso-Francês cujo prédio fora por muitos anos afecto à Companhia Carris e ultimamente demolido para, como constava, se edificar um dancing, o que não chegou a acontecer, ali permanecendo só uma ruína, na nova via ligando o Castelo do Queijo à estrada da Circunvalação e à horrenda fronteira sul de Matosinhos; defronte ao edifício transparente, construção de vidros e de poucas paredes, entre a praia e o termo do parque da cidade, mastodonte imponente e de elevados custos, projectado para zona de lazer, um elefante branco que ninguém ousava explorar, era só ocupado pelos ventos, o pó, as areias e a chuva, está um velho taxi parado de capot aberto fumegando. Inclinado sobre ele, como cana de pesca vergada pelo peixe, com os bigodes brancos e pendentes, as mãos esguias, trémulas, negras de óleo, a eterna bata sempre usada em serviço, cinzenta como o céu que nos cobria, o Jeremias Paredes, que na verdade se chamava Carneiro, mas por ser natural de Paredes de Coura, povoação que, saudoso, evocava, estava sempre a superlativar, considerava incomparável, por Paredes seria conhecido e tratado. Era dos mais idosos, talvez o mais antigo motorista de praça da cidade e, a seu lado, nervoso, com uma bela malinha de fino couro na mão direita, a gabardina branca, tão bem dobrada e rígida que parecia sólida, que parecia alva, uniforme mancha pintada numa tela, pendendo do antebraço esquerdo, cheviote de trespasse, gravata regimental, camisa clara, um sujeito estrangeiro invectivava-o, queixando-se do atraso, mirando e remirando o relógio de pulso, declarando num português mascavado, muitas vezes incompreensível, que não podia perder o avião, que fazia, que acontecia. Não lhe liguei ponta de corno. Perguntei ao Jeremias o que se passava. Desanimado, ele contou que fora ao hotel buscar o americano para o conduzir ao aeroporto, o carro começara a deitar fumo, a resfolgar, queimara-se a colaça, recorrera à central para mandarem um colega, enquanto o cliente não cessava de protestar. Das janelas de autocarros quase vazios, alguns viajantes observavam a cena de relance. Dois operários de bicicleta abrandariam um pouco ao passarem ali. Uns catraios ranhosos, hirsutos, friorentos, talvez vindos da praia, rodearam o estrangeiro, pedindo-lhe esmola, de mãos estendidas e sujas. Foram corridos com um berro do Paredes. Tens de mudar de carro, disse-lhe eu. Este já deu o que tinha a dar, e prestei-me a conduzir o irado cliente. O meu colega fechou com estrépito o capot, resmungou, vencido: «É muito tarde. Este morre comigo ou eu com ele. Vou voltar para a terra». O americano nunca mais se calava. Que isto era um país muito atrasado, que não podia perder o avião, que se queixaria ao consulado, ao Governo Civil, à embaixada, ao Ministro dos Negócios Estrangeiros, que pediria responsabilidades, exigiria indemnizações, desculpas, o diabo. Aturei-o quase metade do caminho e perdi, de repente, a paciência. Vibrei uma bruta palmada no volante que me fez doer toda a mão e gritei-lhe, furioso: «Shut-up!», que eram as únicas palavras em inglês, por certo aprendidas nos filmes de cowboys ainda não denominados western, que eu sabia. O cavalheiro nunca mais abriu bico e até, honra lhe seja feita, me premiou com choruda gorjeta.
Nunca mais soube do Jeremias Paredes. Talvez o carro fosse para a sucata e ele regressasse à sua terra.»
Edições Afrontamento, Março 2011
27 junho 2011
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6 comentários:
Bonito!
Melancólico, mas ainda assim bonito.
Um texto com matizes que nos conduzem à nostalgia, numa linguagem bem cuidada.
Obrigado pela divulgação.
Gostei.
Abraços
Belíssimo texto
Um naco de prosa suculento e visato por olhos que vêm a realidade do envelhecer deste nobre burgo que diariamente vai sendo aviltado em nome de um progresso que mais parece um retrocesso civilizacional.
Andei no colégio luso-francês. Podia dedircarme a confirmar este facto mas tenho pressa: acho que o colégio que ali se situava era o CLIP, não o Luso-Francês
Era, de facto, o CLIP, o Colégio Internacional do Porto mas o lapso perdoa-se ao autor. O texto é de ficção e vale por si.
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