01 fevereiro 2006
25 janeiro 2006
Da Urbe e do Burgo - II
A nova muralha do Porto
O atributo «nova», para classificar a muralha mandada edificar por D. Afonso IV, distingue-a da antiga e pequena muralha, apelidada de sueva, que hoje se sabe ter sido levantada durante a ocupação romana da península, nos séculos III ou IV d.C.
Da velha muralha existe uma torre no morro da Sé, actualmente decorada com um sinal de trânsito e dois contentores de lixo verdes, cor da ecologia mas também da esperança. Adiante. É da cerca nova do Porto, longa de três quilómetros, que nos fala o excerto da crónica de Sant'Anna Dionísio, publicada nos anos 60, que escolhi para enquadrar a fotografia da muralha popularmente conhecida como fernandina. Muralha que, como vimos abaixo, foi mandada demolir pelo Almada pai, no século XVIII.
__________________
«Ao sair da Idade Média, o Porto, tendo rompido a exígua carapaça do chamado muro velho (ou muro "suevo") , acomoda-se mais à vontade e com mais segurança dentro do muro novo, que, à custa de duro trabalho dos moradores e alguns decerto dos arredores, se erguera, em menos de meio século, desde o recôncavo de Miragaia ao despenhadeiro dos Guindais.
Essa importante obra de defesa deve ter sido determinada pelo risco que os Portuenses correram, em 1336, no começo do reinado de D. Afonso IV, quando uma aguerrida hoste de uns 1 300 galegos e castelhanos, capitaneados por um vassalo de Afonso IX de Castela, D. Fernando de Castro, invadiu o Entre Douro e Minho e veio até às cercanias do burgo. Em presença do perigo, o bispo, D. Vasco Martins, juntou a gente que pôde e, com a ajuda do arcebispo de Braga, D. Gonçalo Pereira (o avô de Nun'Alvares), e do grão-mestre da Ordem de Cristo, D. Estêvão Gonçalves, atacou os invasores e desbaratou-os na passagem do rio Leça.
Nesse mesmo ano se deu começo à construção da nova muralha do Porto, estando a cidade escarmentada com o risco que correra, pois inúmeras casas, por falta de espaço dentro do morro da Sé, haviam sido construídas fora da muralha velha.
De resto, desde D. Dinis, verificava-se, em Portugal, de norte a sul, intensa actividade de prevenção. Por toda a parte se construíam muralhas e couraças. Vila Real, Chaves, Vinhais, Bragança, Trancoso, Pinhel, Sabugal cercavam-se de possantes torres e barbacãs. Eram as obras de toda a gente. No canseiroso formigueiro que as fazia surgir do chão misturavam-se homens de todas as condições: rústicos, vilões, mesteirais e até clérigos. Cada "vizinho" e cada pulso contribuía com um "canto".
Quem prestar atenção ao que ainda resta desses muros (infelizmente convertidos,quase todos, em pedreiras maninhas, nos séculos XVIII e XIX), não poderá deixar de ficar impressionado com a grandeza de tantas obras realizadas por um país que contava, se tanto, um milhão de habitantes.
A muralha nova do Porto, ao fim de quarenta anos de trabalho anónimo, estava concluída. Reinava então o Inconstante, já a braços com a desastrosa contenda com o Trastâmara. O burgo expansivo e forte podia dormir com mais sossego, tendo as portas bem trancadas de noite.
O muro apresentava uma altura média de três braças, de espessura uma braça, mais de meia légua de perímetro (uns 3400 metros), cinco portas defendidas por torres, sete postigos e duas dezenas de cubelos.
(Interrogue-se hoje algum mestre-de-obras, pausado e entendido, e pergunte-se em quanto poderia importar uma obra dessas, em boa cantaria de granito, bem travada e aparelhada -, não se esquecendo de o informar, à puridade, que os penedos, nesse tempo, eram cortados a guilho e o transporte dos grandes rebos se fazia em poderosas forquilhas ou «zorras» de carvalho lusitano...)
A relativa prosperidade que o burgo fruía (graças ao comércio com os países do Norte, nesse tempo mais necessitados ainda do que hoje do que só o solo e o sol dos meridionais lhes poderia levar: o vinho, as frutas e o sal), não deve ter sido alheia a essa obra realizada em tão reduzido tempo.»
Sant'Anna Dionísio
O atributo «nova», para classificar a muralha mandada edificar por D. Afonso IV, distingue-a da antiga e pequena muralha, apelidada de sueva, que hoje se sabe ter sido levantada durante a ocupação romana da península, nos séculos III ou IV d.C.
Da velha muralha existe uma torre no morro da Sé, actualmente decorada com um sinal de trânsito e dois contentores de lixo verdes, cor da ecologia mas também da esperança. Adiante. É da cerca nova do Porto, longa de três quilómetros, que nos fala o excerto da crónica de Sant'Anna Dionísio, publicada nos anos 60, que escolhi para enquadrar a fotografia da muralha popularmente conhecida como fernandina. Muralha que, como vimos abaixo, foi mandada demolir pelo Almada pai, no século XVIII.
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«Ao sair da Idade Média, o Porto, tendo rompido a exígua carapaça do chamado muro velho (ou muro "suevo") , acomoda-se mais à vontade e com mais segurança dentro do muro novo, que, à custa de duro trabalho dos moradores e alguns decerto dos arredores, se erguera, em menos de meio século, desde o recôncavo de Miragaia ao despenhadeiro dos Guindais.
Essa importante obra de defesa deve ter sido determinada pelo risco que os Portuenses correram, em 1336, no começo do reinado de D. Afonso IV, quando uma aguerrida hoste de uns 1 300 galegos e castelhanos, capitaneados por um vassalo de Afonso IX de Castela, D. Fernando de Castro, invadiu o Entre Douro e Minho e veio até às cercanias do burgo. Em presença do perigo, o bispo, D. Vasco Martins, juntou a gente que pôde e, com a ajuda do arcebispo de Braga, D. Gonçalo Pereira (o avô de Nun'Alvares), e do grão-mestre da Ordem de Cristo, D. Estêvão Gonçalves, atacou os invasores e desbaratou-os na passagem do rio Leça.
Nesse mesmo ano se deu começo à construção da nova muralha do Porto, estando a cidade escarmentada com o risco que correra, pois inúmeras casas, por falta de espaço dentro do morro da Sé, haviam sido construídas fora da muralha velha.
De resto, desde D. Dinis, verificava-se, em Portugal, de norte a sul, intensa actividade de prevenção. Por toda a parte se construíam muralhas e couraças. Vila Real, Chaves, Vinhais, Bragança, Trancoso, Pinhel, Sabugal cercavam-se de possantes torres e barbacãs. Eram as obras de toda a gente. No canseiroso formigueiro que as fazia surgir do chão misturavam-se homens de todas as condições: rústicos, vilões, mesteirais e até clérigos. Cada "vizinho" e cada pulso contribuía com um "canto".
Quem prestar atenção ao que ainda resta desses muros (infelizmente convertidos,quase todos, em pedreiras maninhas, nos séculos XVIII e XIX), não poderá deixar de ficar impressionado com a grandeza de tantas obras realizadas por um país que contava, se tanto, um milhão de habitantes.
A muralha nova do Porto, ao fim de quarenta anos de trabalho anónimo, estava concluída. Reinava então o Inconstante, já a braços com a desastrosa contenda com o Trastâmara. O burgo expansivo e forte podia dormir com mais sossego, tendo as portas bem trancadas de noite.
O muro apresentava uma altura média de três braças, de espessura uma braça, mais de meia légua de perímetro (uns 3400 metros), cinco portas defendidas por torres, sete postigos e duas dezenas de cubelos.
(Interrogue-se hoje algum mestre-de-obras, pausado e entendido, e pergunte-se em quanto poderia importar uma obra dessas, em boa cantaria de granito, bem travada e aparelhada -, não se esquecendo de o informar, à puridade, que os penedos, nesse tempo, eram cortados a guilho e o transporte dos grandes rebos se fazia em poderosas forquilhas ou «zorras» de carvalho lusitano...)
A relativa prosperidade que o burgo fruía (graças ao comércio com os países do Norte, nesse tempo mais necessitados ainda do que hoje do que só o solo e o sol dos meridionais lhes poderia levar: o vinho, as frutas e o sal), não deve ter sido alheia a essa obra realizada em tão reduzido tempo.»
Sant'Anna Dionísio
18 janeiro 2006
A Imagem da Cidade
Contemplar cidades pode ser especialmente agradável, por mais vulgar que o panorama possa ser. Tal como uma obra arquitectónica, a cidade é uma construção no espaço, mas uma construção em grande escala, algo apenas perceptível no decurso de longos períodos de tempo. O design de uma cidade é, assim, uma arte temporal, mas raramente pode usar as sequências controladas e limitadas de outras artes temporais como, por exemplo, a música. Em ocasiões diferentes e para pessoas diferentes, as sequências são invertidas, interrompidas, abandonadas, anuladas. Isto acontece a todo o passo.
A cada instante existe mais do que a vista alcança, mais do que o ouvido pode ouvir, uma composição ou um cenário à espera de ser analisado. Nada se conhece em si próprio, mas em relação ao seu meio ambiente, à cadeia precedente de acontecimentos, à recordação de experiências passadas. (...) Todo o cidadão possui numerosas relações com algumas partes da sua cidade e a sua imagem está impregnada de memórias e significações.
Os elementos móveis de uma cidade, especialmente as pessoas e as suas actividades, são tão importantes como as suas partes físicas e imóveis. Não somos apenas observadores deste espectáculo, mas sim uma parte activa dele, participando com os outros num mesmo palco. Na maior parte das vezes, a nossa percepção da cidade não é íntegra, mas sim bastante parcial, fragmentária, envolvida noutras referências. Quase todos os sentidos estão envolvidos e a imagem é o composto resultante de todos eles.
A cidade não é apenas um objecto perceptível (e talvez apreciado) por milhões de pessoas das mais variadas classes sociais e pelos mais variados tipos de personalidades, mas é o produto de muitos construtores que constantemente modificam a estrutura por razões particulares. Se, por um lado, podem manter-se as linhas gerais exteriores, por outro há uma constante mudança no pormenor. Apenas parcialmente é possível controlar o seu crescimento e a sua forma. Não existe um resultado final, mas somente uma contínua sucessão de fases. Assim, não podemos admirar-nos pelo facto de a arte de dar forma às cidades, visando um prazer estético, estar bastante distante da arquitectura, da música ou da literatura. Pode aproveitar delas grandes contributos, mas não pode imitá-las.
Kevin Lynch
in A Imagem da Cidade, Edições 70
11 janeiro 2006
Da Urbe e do Burgo - I
Da Urbe e do Burgo é o título de uma colectânea de crónicas de Sant'Anna Dionísio, publicadas inicialmente entre 1960 e 1970, no jornal O Primeiro de Janeiro, que a Lello & Irmão editou em 1971.
A Cidade Surpreendente, propõe-se reproduzir aqui alguns excertos dessas crónicas do distinto pensador, que tão bem conhecia e tanto amava o Porto, e ilustrá-los, na medida do possível, com imagens fotográficas.
__________________
Os Dois Almadas
«Durante muito tempo se supôs que a cidade do Porto devia a sua profunda transfiguração, operada na segunda metade do século XVIII, à acção reformadora do desembargador Francisco de Almada (o suposto orientador e promotor de "todas" as grandes obras de urbanização modernizante levadas a efeito na periferia do velho burgo) , varão falecido em 1804, e que, depois de um longo hiato de esquecimento - em boa parte explicável pelos dois períodos consecutivos de infortúnios das invasões francesas e da guerra civil - seria objecto de exaltadas evocações ao efectuar-se, em 1879, por iniciativa do Município, a trasladação das suas cinzas para o Prado do Repouso, então inaugurado, onde hoje se encontram, num mausoléu, sobrepujado por um busto lavrado pelo cinzel de Soares dos Reis.
Esta persuasão era tão forte que, quando se deu esse nome de "Almada" à rua que hoje ainda assim se designa, ambígua e injustamente se visava, como é sabido, a evocação da figura do desembargador e urbanizador "pombalino" (sic), desaparecido pouco antes da primeira invasão napoleónica.
No entanto, já há meio século, na sua obra Portuenses Ilustres, Sampaio Bruno entendeu, e com razão, que essa atribuição das maiores transformações do Porto ao afamado Francisco de Almada era bastante indevida, acentuando que o "grande Almada" não era o desembargador falecido em 1804, mas sim o pai, o regedor de armas governador da província de Entre Douro e Minho, parente e homem de confiança do marquês de Pombal, falecido em idade avançada, em 1786, na cidade do Porto, onde teria exercido longa influência como governador da cidade, administrador do erário e inspector das obras de interesse público.
Na realidade, o reparo de Bruno plenamente se justifica se se prestar um pouco de atenção às datas das principais obras de transfiguração que, no Porto, se realizaram na segunda metade do século dezoito.
Antes de tudo, importa ter presente que, ainda na primeira metade desse século, a cidade era circundada pela chamada muralha fernandina, com as respectivas torres, portas e postigos, que a cingiam, num perímetro de cerca de três quilómetros.Fora desse cinto, era o "arrabalde".
Pelas gravuras que nos ficaram dessa época se vê claramente a fisionomia singular da cidade, comprimida entre essa poderosa cerca medieva que, de um lado, subia pelos alcantilados fraguedos dos Guindais, e, do outro, pela encosta íngreme de Miragaia, notando-se ao longo do rio um alto muro marginal com a grande Porta da Ribeira junto da confluência do chamado rio da Vila e, de um lado e outro, um certo número de arcadas e postigos.
Assim a contemplou e desenhou o pintor Baldi, secretário de Cosme de Médicis, na sua passagem pela cidade, em 1670. E, como ele, outros.
A demolição dessa cinta robusta que, ainda em pleno Século das Luzes imprimia um cunho tão acentuadamente pitoresco e arcaico ao casario moreno do Porto, seria o grande golpe transfigurador do velho burgo.
Ora esse golpe, em boa parte, foi vibrado por João de Almada, o pai, e não por Francisco de Almada, o filho. Foi aquele quem mandou demolir a grandiosa Porta da Ribeira (1774) para poder concluir a audaciosa obra de urbanização e higiene que ai realizou: a cobertura do velho e pestilento "rio da Vila", que assim se converteu em colector axial da cidade moderna, e sobre cuja abóbada se lançou o íngreme pavimento da Rua de S. João, também da sua iniciativa. Foi ele quem deitou por terra o "postigo do sol", convertendo-o na monumental Porta do Sol (por sua vez demolida, uns oitenta anos depois, por uma edilidade ignorante). Foi ele, decerto, ainda quem mandou apear a Porta do Olival, que fazia face à Cordoaria, porta enorme flanqueada por duas torres, situada, talvez, onde hoje está a Cadeia da Relação. O edifício filipino havia ruído. João de Almada mandou levantá-lo de novo, servindo-se, por certo, em boa parte da «enorme pedreira» que (para os seus olhos) era a muralha.
A própria Torre dos Clérigos (concluída em 1763 que o poeta Teixeira de Pascoaes, num súbito espirro de bom humor, definiu, num livro seu, como «o Porto espremido para cima», não deixou de receber com certeza muita cantaria da velha muralha. Pedras que teriam visto passar o séquito de D. João I com sua noiva, D. Filipa de Lencastre, teriam sido guindadas aos inverosímeis andaimes, depois de aparelhadas e lavradas, sob o olhar atento de Nasoni, transformando-se em empoleirados pináculos, balaústres e cornijas vizinhas das nuvens...
Assim poderemos parafrasear o Poeta dizendo que a torre, se não é o Porto espremido para cima, é, pelo menos, "in partibus", a sua velha muralha medieva posta a pique.»
(...)
Sant'Anna Dionísio
A Cidade Surpreendente, propõe-se reproduzir aqui alguns excertos dessas crónicas do distinto pensador, que tão bem conhecia e tanto amava o Porto, e ilustrá-los, na medida do possível, com imagens fotográficas.
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Os Dois Almadas
«Durante muito tempo se supôs que a cidade do Porto devia a sua profunda transfiguração, operada na segunda metade do século XVIII, à acção reformadora do desembargador Francisco de Almada (o suposto orientador e promotor de "todas" as grandes obras de urbanização modernizante levadas a efeito na periferia do velho burgo) , varão falecido em 1804, e que, depois de um longo hiato de esquecimento - em boa parte explicável pelos dois períodos consecutivos de infortúnios das invasões francesas e da guerra civil - seria objecto de exaltadas evocações ao efectuar-se, em 1879, por iniciativa do Município, a trasladação das suas cinzas para o Prado do Repouso, então inaugurado, onde hoje se encontram, num mausoléu, sobrepujado por um busto lavrado pelo cinzel de Soares dos Reis.
Esta persuasão era tão forte que, quando se deu esse nome de "Almada" à rua que hoje ainda assim se designa, ambígua e injustamente se visava, como é sabido, a evocação da figura do desembargador e urbanizador "pombalino" (sic), desaparecido pouco antes da primeira invasão napoleónica.
No entanto, já há meio século, na sua obra Portuenses Ilustres, Sampaio Bruno entendeu, e com razão, que essa atribuição das maiores transformações do Porto ao afamado Francisco de Almada era bastante indevida, acentuando que o "grande Almada" não era o desembargador falecido em 1804, mas sim o pai, o regedor de armas governador da província de Entre Douro e Minho, parente e homem de confiança do marquês de Pombal, falecido em idade avançada, em 1786, na cidade do Porto, onde teria exercido longa influência como governador da cidade, administrador do erário e inspector das obras de interesse público.
Na realidade, o reparo de Bruno plenamente se justifica se se prestar um pouco de atenção às datas das principais obras de transfiguração que, no Porto, se realizaram na segunda metade do século dezoito.
Antes de tudo, importa ter presente que, ainda na primeira metade desse século, a cidade era circundada pela chamada muralha fernandina, com as respectivas torres, portas e postigos, que a cingiam, num perímetro de cerca de três quilómetros.Fora desse cinto, era o "arrabalde".
Pelas gravuras que nos ficaram dessa época se vê claramente a fisionomia singular da cidade, comprimida entre essa poderosa cerca medieva que, de um lado, subia pelos alcantilados fraguedos dos Guindais, e, do outro, pela encosta íngreme de Miragaia, notando-se ao longo do rio um alto muro marginal com a grande Porta da Ribeira junto da confluência do chamado rio da Vila e, de um lado e outro, um certo número de arcadas e postigos.
Assim a contemplou e desenhou o pintor Baldi, secretário de Cosme de Médicis, na sua passagem pela cidade, em 1670. E, como ele, outros.
A demolição dessa cinta robusta que, ainda em pleno Século das Luzes imprimia um cunho tão acentuadamente pitoresco e arcaico ao casario moreno do Porto, seria o grande golpe transfigurador do velho burgo.
Ora esse golpe, em boa parte, foi vibrado por João de Almada, o pai, e não por Francisco de Almada, o filho. Foi aquele quem mandou demolir a grandiosa Porta da Ribeira (1774) para poder concluir a audaciosa obra de urbanização e higiene que ai realizou: a cobertura do velho e pestilento "rio da Vila", que assim se converteu em colector axial da cidade moderna, e sobre cuja abóbada se lançou o íngreme pavimento da Rua de S. João, também da sua iniciativa. Foi ele quem deitou por terra o "postigo do sol", convertendo-o na monumental Porta do Sol (por sua vez demolida, uns oitenta anos depois, por uma edilidade ignorante). Foi ele, decerto, ainda quem mandou apear a Porta do Olival, que fazia face à Cordoaria, porta enorme flanqueada por duas torres, situada, talvez, onde hoje está a Cadeia da Relação. O edifício filipino havia ruído. João de Almada mandou levantá-lo de novo, servindo-se, por certo, em boa parte da «enorme pedreira» que (para os seus olhos) era a muralha.
A própria Torre dos Clérigos (concluída em 1763 que o poeta Teixeira de Pascoaes, num súbito espirro de bom humor, definiu, num livro seu, como «o Porto espremido para cima», não deixou de receber com certeza muita cantaria da velha muralha. Pedras que teriam visto passar o séquito de D. João I com sua noiva, D. Filipa de Lencastre, teriam sido guindadas aos inverosímeis andaimes, depois de aparelhadas e lavradas, sob o olhar atento de Nasoni, transformando-se em empoleirados pináculos, balaústres e cornijas vizinhas das nuvens...
Assim poderemos parafrasear o Poeta dizendo que a torre, se não é o Porto espremido para cima, é, pelo menos, "in partibus", a sua velha muralha medieva posta a pique.»
(...)
Sant'Anna Dionísio
04 janeiro 2006
Feudo-tirou
Num dos frequentes levantamentos dos burgueses portuenses, ocorridos ao longo de séculos contra o domínio episcopal, alguns delegados régios mandaram saquear e derrubar as casas de alguns cónegos partidários do bispo. Questão de poderes. No trono estava então D. Sancho I, rei de Portugal... e dos Algarves que viria a perder. A este interessava reduzir o domínio do bispado do Porto, pertencente a Martinho Rodrigues, um bispo de má catadura, uma vez que tinha contra ele a maioria dos membros do cabido da Sé.
O povo... associou-se aos tumultos arrombando as portas das igrejas e introduzindo no interior os excomungados. Segundo Sampaio Bruno, que nos conta esta história no I tomo do seu interessante Portuenses Ilustres, dado à estampa em 1907, esta situação durou cinco longos meses, com «o bispo encerrado no palácio episcopal, em tão estreito assédio que nem sequer lhe consentiram entrasse um sacerdote, a confessá-lo, numa enfermidade que lhe sobreveio.»
Martinho Rodrigues acabaria por fugir o que levou o poder real a confiscar os seus avultados bens e os da mitra. Chegado a Roma «em tal estado de miséria que movia à compaixão», pôs o Papa ao corrente dos seus padecimentos. Perante tal desmanda, Inocêncio III apressou-se a dirigir cartas ao bispo e arcediago de Zamora e ao abade beneditino de Mosconela, «nas quais lhes dava comissão para compelirem Sancho I a reparar os danos praticados e a dar satisfação das injúrias feitas ao prelado.» Mandou igualmente que «fulminassem a excomunhão contra os oficiais do rei, instrumentos da perseguição, e especialmente contra dois burgueses, que parece haverem sido os chefes do levantamento popular.»
Um desses burgueses era João Alvo, e o seu companheiro um tal Pedro, que ficou conhecido pela alcunha popular de «Feudo-tirou». Os restantes burgueses portuenses que tinham lutado pelos seus foros, acabaram abandonados pelo rei poeta e ferozmente perseguidos pelo poder episcopal.
Sobre os vencidos destes tumultos, sentenciou Alexandre Herculano, ainda segundo Bruno:« (...) os seus inimigos, conservando os documentos do triunfo obtido, transmitiram-nos involuntariamente a memória desses homens enérgicos, e os nomes de João Alvo e Pedro «Feudo-tirou» (...) podemos hoje estampá-los nas páginas da história, o grande e indestrutível livro da linhagem popular.»
O fim do feudo, que Pedro acabou por não tirar, seria negociado dois séculos mais tarde, a 13 de Abril de 1406, por D. João I, conforme relatou Germano Silva numa crónica recentemente publicada no Jornal de Notícias, em que apela para a comemoração dos 600 anos de autonomia administrativa do Porto.
O povo... associou-se aos tumultos arrombando as portas das igrejas e introduzindo no interior os excomungados. Segundo Sampaio Bruno, que nos conta esta história no I tomo do seu interessante Portuenses Ilustres, dado à estampa em 1907, esta situação durou cinco longos meses, com «o bispo encerrado no palácio episcopal, em tão estreito assédio que nem sequer lhe consentiram entrasse um sacerdote, a confessá-lo, numa enfermidade que lhe sobreveio.»
Martinho Rodrigues acabaria por fugir o que levou o poder real a confiscar os seus avultados bens e os da mitra. Chegado a Roma «em tal estado de miséria que movia à compaixão», pôs o Papa ao corrente dos seus padecimentos. Perante tal desmanda, Inocêncio III apressou-se a dirigir cartas ao bispo e arcediago de Zamora e ao abade beneditino de Mosconela, «nas quais lhes dava comissão para compelirem Sancho I a reparar os danos praticados e a dar satisfação das injúrias feitas ao prelado.» Mandou igualmente que «fulminassem a excomunhão contra os oficiais do rei, instrumentos da perseguição, e especialmente contra dois burgueses, que parece haverem sido os chefes do levantamento popular.»
Um desses burgueses era João Alvo, e o seu companheiro um tal Pedro, que ficou conhecido pela alcunha popular de «Feudo-tirou». Os restantes burgueses portuenses que tinham lutado pelos seus foros, acabaram abandonados pelo rei poeta e ferozmente perseguidos pelo poder episcopal.
Sobre os vencidos destes tumultos, sentenciou Alexandre Herculano, ainda segundo Bruno:« (...) os seus inimigos, conservando os documentos do triunfo obtido, transmitiram-nos involuntariamente a memória desses homens enérgicos, e os nomes de João Alvo e Pedro «Feudo-tirou» (...) podemos hoje estampá-los nas páginas da história, o grande e indestrutível livro da linhagem popular.»
O fim do feudo, que Pedro acabou por não tirar, seria negociado dois séculos mais tarde, a 13 de Abril de 1406, por D. João I, conforme relatou Germano Silva numa crónica recentemente publicada no Jornal de Notícias, em que apela para a comemoração dos 600 anos de autonomia administrativa do Porto.
21 dezembro 2005
É Natal na Cidade Surpreendente
...e este blogue... vai de férias até à alvorada de um novo ano, a 4 de Janeiro.
Boas Festas a todos.
Labels:
Natal,
Rua de 31 de Janeiro,
Torre dos Clérigos
14 dezembro 2005
Pessoas
Um par rapioqueiro...
...um mago improvisado...
... gente anónima num fim de tarde frio de Dezembro, entre Santa Catarina e a Batalha.
07 dezembro 2005
Lello & Irmão - uma livraria deslumbrante
No dia 13 de Janeiro de 1906, por volta do meio-dia, a baixa portuense acotovelava-se para ver as individualidades mais destacadas das Letras portuguesas, professores universitários, artistas, jornalistas, homens políticos e comerciantes do Porto, entre os familiares dos proprietários da Livraria Lello e Xavier Esteves, autor do projecto do edifício a inaugurar, todos dirigindo-se para o interior daquela casa, onde se procederia à solenidade de abertura. Presentes figuras como Guerra Junqueiro, Abel Botelho, João Grave, Bento Carqueja, Aurélio da Paz dos Reis, Afonso Costa e muitos outros.
Depois de um beberete e de palavras elogiosas proferidas aos editores livreiros, Abel Botelho deixou registado o seu testemunho no Livro de Ouro da livraria, que se revelou premonitório: «...erigir um tão formoso templo ao divino culto da Emoção e da Ideia, é um grande acto de benemerência, e que, pelos seus largos e fecundos resultados, há-de ligar perduravelmente os nomes Lello & Irmão ao reconhecimento nacional».
A história da livraria Lello remonta a 1869, ano em que é fundada na Rua dos Clérigos a Livraria Internacional de Ernesto Chardron. Após o imprevisto falecimento de Chardron, aos 45 anos de idade, a casa editora foi vendida à firma Lugan & Genelioux Sucessores. Em 1894 Mathieux Lugan vendia a Livraria Chardron a José Pinto de Sousa Lello que possuía então uma livraria na Rua do Almada. Associado ao irmão, António Lello, mantêm a Livraria Chardron, com a razão social de José Pinto de Sousa Lello & Irmão, até 1919, ano em que o nome da sociedade muda para Lello & Irmão Lda.
Este verdadeiro ex-líbris da cidade atravessou o século XX, geração após geração, nas mãos da mesma família. Em 1995, José Manuel Lello decide realizar uma profunda transformação no interior da livraria, cuja herança, segundo as suas palavras, lhe «trazia não só um passado de ricas tradições mas também a exigência de fazer perdurar esse ideal de amor pelos livros, que se traduziu na edificação de uma obra arquitectónica única no mundo». O trabalho de restauro e de adaptação às actuais formas de uso foi entregue ao arquitecto Vasco Morais Soares.
Entrando hoje no interior da livraria, o visitante sente-se envolvido por um ambiente acolhedor, onde pontificam os livros e uma decoração impressiva. Uma vasta sala, com uma galeria que dá acesso a um escada ornamental, onde correm algumas mesas que servem para exposição dos livros. Bancos em madeira e revestidos a couro e estantes a toda a altura desta sala perfazem o espaço interior próprio de uma livraria actual, mas que guarda a memória do passado. Nos pilares, à esquerda e à direita, distinguem-se os bustos de distintos homens de letras: Eça de Queirós, Camilo Castelo Branco, Antero de Quental, Tomás Ribeiro, Teófilo Braga e Guerra Junqueiro. O tecto, lavrado, resguarda no centro uma luminosidade diáfana que provém do amplo vitral em que se desenha o ex-libris de Lello & Irmão, Lda, com a conhecida divisa, «Decus in Labore».
Como escreveu um afamado jornalista do princípio do século, «a riqueza de tons do grande vitral, o recorte gracioso das janelas, a balaustrada da galeria e os grandes candelabros situados nos ângulos que demarcam esse espaço, as lindas ogivas que se entrelaçam no tecto sob os florões e que vêm morrer nas nervuras que correm pelos pilares até às mísulas, deixam o visitante deslumbrado».
A mesma admiração suscita a fachada em estilo neogótico, formada por um amplo arco abatido, cuja entrada se divide numa porta central, ladeada por duas montras.
Sobre este arco há uma janela tripla, fechada na platibanda e separada das pilastras, as quais são encimadas por coruchéus originais. Dos lados da janela, destacam-se duas figuras pintadas, da autoria de José Bielman, simbolizando uma a Arte e a outra a Ciência.
O resto da fachada completa-se com ornamentação fitográfica e com o nome da livraria. De realçar o rendilhado que encima o edifício, todo ele um monumento artístico que já mereceu classificação de património nacional.
Adaptação livre de um texto da livraria Lello & Irmão
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