Da
Urbe e do Burgo é o título de uma colectânea de crónicas de
Sant'Anna Dionísio, publicadas inicialmente entre 1960 e 1970, no jornal
O Primeiro de Janeiro, que a
Lello & Irmão editou em 1971.
A Cidade Surpreendente, propõe-se reproduzir aqui alguns excertos dessas crónicas do distinto pensador, que tão bem conhecia e tanto amava o Porto, e ilustrá-los, na medida do possível, com imagens fotográficas.
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Os Dois Almadas
«Durante muito tempo se supôs que a cidade do Porto devia a sua profunda transfiguração, operada na segunda metade do século XVIII, à acção reformadora do desembargador Francisco de Almada (o suposto orientador e promotor de "todas" as grandes obras de urbanização modernizante levadas a efeito na periferia do velho burgo) , varão falecido em 1804, e que, depois de um longo hiato de esquecimento - em boa parte explicável pelos dois períodos consecutivos de infortúnios das invasões francesas e da guerra civil - seria objecto de exaltadas evocações ao efectuar-se, em 1879, por iniciativa do Município, a trasladação das suas cinzas para o
Prado do Repouso, então inaugurado, onde hoje se encontram, num mausoléu, sobrepujado por um busto lavrado pelo cinzel de
Soares dos Reis.
Esta persuasão era tão forte que, quando se deu esse nome de "Almada" à rua que hoje ainda assim se designa, ambígua e injustamente se visava, como é sabido, a evocação da figura do desembargador e urbanizador "pombalino" (sic), desaparecido pouco antes da primeira invasão napoleónica.
No entanto, já há meio século, na sua obra
Portuenses Ilustres,
Sampaio Bruno entendeu, e com razão, que essa atribuição das maiores transformações do Porto ao afamado Francisco de Almada era bastante indevida, acentuando que o "grande Almada" não era o desembargador falecido em 1804, mas sim o pai, o regedor de armas governador da província de Entre Douro e Minho, parente e homem de confiança do marquês de Pombal, falecido em idade avançada, em 1786, na cidade do Porto, onde teria exercido longa influência como governador da cidade, administrador do erário e inspector das obras de interesse público.
Na realidade, o reparo de
Bruno plenamente se justifica se se prestar um pouco de atenção às datas das principais obras de transfiguração que, no Porto, se realizaram na segunda metade do século dezoito.
Antes de tudo, importa ter presente que, ainda na primeira metade desse século, a cidade era circundada pela chamada muralha fernandina, com as respectivas torres, portas e postigos, que a cingiam, num perímetro de cerca de três quilómetros.Fora desse cinto, era o "arrabalde".
Pelas gravuras que nos ficaram dessa época se vê claramente a fisionomia singular da cidade, comprimida entre essa poderosa cerca medieva que, de um lado, subia pelos alcantilados fraguedos dos Guindais, e, do outro, pela encosta íngreme de Miragaia, notando-se ao longo do rio um alto muro marginal com a grande Porta da Ribeira junto da confluência do chamado rio da Vila e, de um lado e outro, um certo número de arcadas e postigos.
Assim a contemplou e desenhou o pintor Baldi, secretário de Cosme de Médicis, na sua passagem pela cidade, em 1670. E, como ele, outros.
A demolição dessa cinta robusta que, ainda em pleno Século das Luzes imprimia um cunho tão acentuadamente pitoresco e arcaico ao casario moreno do Porto, seria o grande golpe transfigurador do velho burgo.
Ora esse golpe, em boa parte, foi vibrado por João de Almada, o pai, e não por Francisco de Almada, o filho. Foi aquele quem mandou demolir a grandiosa Porta da Ribeira (1774) para poder concluir a audaciosa obra de urbanização e higiene que ai realizou: a cobertura do velho e pestilento "rio da Vila", que assim se converteu em colector axial da cidade moderna, e sobre cuja abóbada se lançou o íngreme pavimento da Rua de S. João, também da sua iniciativa. Foi ele quem deitou por terra o "postigo do sol", convertendo-o na monumental Porta do Sol (por sua vez demolida, uns oitenta anos depois, por uma edilidade ignorante). Foi ele, decerto, ainda quem mandou apear a Porta do Olival, que fazia face à Cordoaria, porta enorme flanqueada por duas torres, situada, talvez, onde hoje está a
Cadeia da Relação. O edifício filipino havia ruído. João de Almada mandou levantá-lo de novo, servindo-se, por certo, em boa parte da «enorme pedreira» que (para os seus olhos) era a muralha.
A própria
Torre dos Clérigos (concluída em 1763 que o poeta
Teixeira de Pascoaes, num súbito espirro de bom humor, definiu, num livro seu, como «o Porto espremido para cima», não deixou de receber com certeza muita cantaria da velha muralha. Pedras que teriam visto passar o séquito de
D. João I com sua noiva, D. Filipa de Lencastre, teriam sido guindadas aos inverosímeis andaimes, depois de aparelhadas e lavradas, sob o olhar atento de
Nasoni, transformando-se em empoleirados pináculos, balaústres e cornijas vizinhas das nuvens...
Assim poderemos parafrasear o Poeta dizendo que a torre, se não é o Porto espremido para cima, é, pelo menos, "in partibus", a sua velha muralha medieva posta a pique.»
(...)
Sant'Anna Dionísio