21 dezembro 2010

A nave esculpida numa torre da Sé do Porto

Octávio Lixa Filgueiras (1922-1996) é já nosso conhecido. É dele o estudo A Arquitectura do Rabelo que esteve na origem do filme com o mesmo título, aqui abordado em 2005. Arquitecto, professor e investigador, com uma vastíssima obra dedicada à etnografia naval, foi ainda o mentor da arqueologia subaquática em Portugal, durante mais de três décadas.

Lixa Filgueiras foi também o autor do ensaio de identificação A nave esculpida numa torre da Sé do Porto, publicado em 1983.
Nesse opúsculo de oito páginas, o autor introduz-nos no tema a tratar referindo "o alegre bater dos picos, a ressonância macia dos cinzéis " dos canteiros, "dos homens que fazem cantar as pedras, que fazem as pedras falar", considerando que "um dos casos mais simples e mais significativos dum tal falar das pedras é o da representação dum navio" na torre norte da Sé do Porto. Representação que "na ingénua simplicidade do seu grafismo esquemático evoca a epopeia dum instrumento de trabalho, dos mais úteis que serviram os homens da sua época, sem o reflexo de qualquer arroubo romântico-literário." Tão verídica, afirma, "que até podemos identificar o espécime representado".

Lixa Filgueiras observa então que, ao contrário do que afirma outro autor, "um barco de pano redondo e perfil angular não se coaduna com a caracterização básica das caravelas, com os seus panos latinos e os elegantes cascos de proa curva por vezes recurvada para trás, bordas baixas, alteando para trás num contraste forte entre proa singela e popa acastelada, barco de incontroversa feição mediterrânica (Fig.1). As linhas hirtas e secas de manifesta feição nórdica," da embarcação da Sé, lembrariam outro género de vasos, em especial as cocas.

Acontece que o que se sabia em Portugal sobre estes barcos, até fins da década de cinquenta, era tão pouco que nem os dicionários de marinha os mencionavam, enquanto o Dicionário de Morais deles apresentava uma definição errada, confundindo cocas com fustas. É em 1961, com o livro The Ship, de Björn Landström (1917-2002), que o grande público passa a dispor de informação adequada e completa. Em 1962 a descoberta de uma coca no porto de Bremen e a sua recuperação pelo Museu Marítimo de Bremerhaven permite organizar um novo capítulo da arqueologia naval.

Diz-nos o autor: "A possibilidade que me foi dada, de observar em 1979 tão destacada peça arqueológica (...) abriu caminho a, passados tempos, olhar para a escultura da Sé do Porto em termos de lhe reconhecer uma identidade formal, de concepção e de caracterização técnica com o original de Bremen (Fig.2). De facto, se compararmos o nosso documento iconográfico com uma representação rigorosa do referido original (Fig.3) verifica-se que":



- "a armação é a mesma, constituída por um pano redondo armado em mastro colocado sensivelmente a meio comprimento de fora-a-fora, situando-se a representação esquemática ao nível das dos selos das cidades livres do Norte (Fig.4)";
- "o perfil do casco, na escultura é também dominado por uma 'quilha recta à qual se ligam uma roda de proa e um cadaste recto, segundo ângulos agudos' ";
- "ainda que o ângulo de lançamento das rodas da proa seja diferente nos dois casos, isso não constitui dificuldade visto que temos de considerar, não só as diferenças que poderiam apresentar as cocas entre si, mas também a significativa igualdade de traçado da roda de proa"(...);
- "a ausência do leme na escultura não levanta problema visto que um tal navio à vela, desta época, não poderia deixar de o possuir";
- "a ausência do estrado de popa, sobre-elevado, também não causa estranheza pois até cocas como as dos selos de Elbing (1242), de Wismar e de Harderwijik (Fig. 4/177, 178, 179) não estão guarnecidas de castelos ou estrados de popa";
- "a aparente menor altura de borda corresponderia a qualquer influência de embarcações de menor porte mas de cunho tradicional "(...);
- "a marcação do tabuado trincado não sofre dúvida; só que as fiadas não apresentam a natural curvatura, antes se alongam a direito, como na figuração do selo de Harderwijk".

"Tendo em conta as limitações que o granito e a mão-de-obra disponível certamente não deixaram de ocasionar, as relações de comparação estabelecidas permitem apontar para a aceitação de identificação da proposta".



Lixa Filgueiras, face ao que acabava de expor, põe a questão de não ser conhecida qualquer alusão a cocas tripuladas por portugueses, e refere o desconhecimento exaustivo dos nossos arquivos da época medieval.

"Que significado teria, portanto, esta pedra com a escultura dum barco que nem sequer vem mencionado nos documentos (conhecidos) relativos às relações do Porto com os comerciantes estrangeiros? E que parece nem ser um navio português? "

A resposta chega pela mão do investigador Óscar Fangueiro, que lhe dá a conhecer um texto apresentado por Jaume Sobrequès e Callicó no Congresso Luso Espanhol de Estudos Medievais, organizado pela Câmara Municipal do Porto em 1968:

"En el año 1333/34 se produjo en la Corona de Aragón una grave carestia de cereales. Para poder abastecer la ciudad de Barcelona los Conselleres Municipales ordenaron al jefe de su esquadra, Galferán Marquet, que le sequestrasse todas las naves que levasen trigo. En Junio de 1334 fueron sequestradas por el mencionado Marquet 6 cocas portuguesas que conducían trigo a Portugal; ello provocó una série de quejas del Monarca Portugés y de las Autoridades Municipales de Lisboa ante Alfonso El Benigno y los Conselleres de Barcelona."

Outras dúvidas, no entanto, persistem:
"Qual a função a que [a pedra] estaria votada na sua postura multisecular? memória, rasto de chegada de cruzados? sigla profissional? esquecido ex-voto? mera representação estereotipada? sinal de contribuição para obra? Qual a mensagem que lhe caberia transmitir - ou, mais modestamente, para comunicar o quê? e a quem? "

E conclui:
"São tudo questões de difícil ou, mesmo, impossível resposta."

3 comentários:

Anónimo disse...

Amigo Carlos!

Este detalhe da nave esculpida, eu nunca tinha visto!
Obrigada.
Estarei mais atenta quando voltar à Sé do Porto.

Gostei muito do texto, muito aprendi aqui hoje.
.
Boas Festas.
Até sempre.
Beijinho

C. Cardoso disse...

Caro Carlos Romão

É (sempre) com prazer que leio os seus artigos e me delicio com a sua poesia fotográfica. Ainda não tinha lido este texto, contudo (e resumindo) a opinião de vários autores é que a imagem em questão é uma coca. A equipa de arqueólogos e historiadores da C.M.P. é da mesma opinião embora se desenhem algumas perspectivas sobre a razão da sua existência ali. Neste cenário, enquadra-se a outra outra marca, a do "Sino Saimão". Para quem gosta de aprender é sempre bem-vinda toda a informação e desde já agradeço esta leitura que remete para o aprofundamento do tema. Outras marcas serão posteriormente divulgadas no meu blog e espero os seus comentários e complentos de informação. Um abraço,
Maria Pereira

C. Cardoso disse...
Este comentário foi removido pelo autor.