29 março 2007
O regresso da Cidade
Como se pode observar pela data da última entrada, há dois meses que não actualizo A Cidade Surpreendente. Mais importante, para mim, do que enumerar as causas da ausência é assinalar o regresso das actualizações do blogue. Para tal, escolhi duas fotografias datadas do período de afastamento. Uma, que gostaria de ter tirado, assinala as treze horas e trinta e sete minutos de 11 de Fevereiro passado, dia em que um cerrado e pacífico nevoeiro, como já não me lembrava de ter visto nem sentido, desceu suavemente sobre o Porto. Foi-me gentilmente enviada, e dedicada à Cidade Surpreendente, por Álvaro Mendonça, com o título feliz de Neblina Concertante. Os Liquidâmbares da Rotunda da Boavista erguiam, então, os ramos despidos de folhas ao céu.
A outra foto foi tirada poucos dias depois, a 24 de Fevereiro. Apesar da ausência unificadora da neblina, não é menos concertante do que a primeira. O concerto aqui é, no entanto, outro, o do tempo universal, marcado pelo prenúncio da Primavera com que a Magnólia da Praça da Liberdade nos presenteia, vestindo-se de branco em pleno Inverno, invariavelmente, a cada ano que passa, para alegria dos nossos dias.
28 janeiro 2007
Jogo de sombras
Antiga Adega de A. Valente, na Rua do Souto
O Motim
Dos amotinados de 1757
nomeio a Estrelada.
Se gostava da pingoleta
é coisa que não sei:
o vinho tem razões
que a razão desconhece
e as razões são aos milhões.
Certo, certo é que o Marquês
disse por cima do ombro:
nas tabernas do Porto
vinho só o da Companhia - ponto
final. Vírgula, disse o povo,
fazendo contas de cabeça.
E nessa quarta-feira
As ruas acenderam-se.
E o sol... moita carrasco.
Abaixo a Companhia!
E foi o pandemónio.
Veio a tropa, veio a lei,
homens de má catadura.
Forca, açoites, calabouço,
confiscação e galés.
Foi quase meio milhar
de tripeiros que julgavam
que o povo é quem mais ordena.
O sol já tinha remorsos:
quem é aquela criança
que assiste à morte do pai?
Condenada, meu senhor.
Da forca pendem treze homens,
quatro mulheres também.
A Estrelada estava grávida
- salvaram-se as aparências.
Ah vocês cuidam que sim?
Cuidam que o rei é um boneco
e que, ao fim de quatro meses,
lá por nascer um fedelho,
a lei vai servir de fralda?
Sobe à forca, ó Estrelada,
e que o Marquês se console,
enquanto o rei come o sol
num cubo de marmelada.
António Cabral
_________________
O motim popular do Porto, em 1757, foi provocado pela decisão régia de não permitir que as tabernas do Porto vendessem vinho que não fosse o da Companhia Geral da Agricultura das Vinhas do Alto Douro (criada no ano anterior) (N.A.)
_________________
in Ao Porto, Colectânea de Poesia sobre o Porto, Publicações D. Quixote, 2001
20 janeiro 2007
Onde a tradição ainda é o que era
A singularidade da figura oitocentista da montra, deslocada no tempo há gerações, serena e levemente altiva, a par da peculiar actividade de produção de cabeleiras num ambiente fin-de-siécle, elevam a pequena loja conhecida como Cardoso Cabeleireiro, na Rua do Bonjardim, à condição de instituição urbana portuense.
Quando lá entrei estava Horácio Teixeira a «fazer a franja», a prender e a alinhar com destreza, num fio esticado, conjuntos de seis a nove cabelos. Para formar uma cabeleira são precisas 2000 fiadas destas, que podem demorar três dias a concluir. Trabalha com cabelo natural, matéria-prima que já foi mais fácil de encontrar. «Hoje os cabelos usam-se curtos; para serem trabalhados têm que ter no mínimo vinte centímetros de comprimento», diz-me.
A actividade já teve melhores dias, «no tempo em que os actores do Sá da Bandeira vestiam a rigor». «Hoje, um actor», mesmo que vá representar o papel de Luís XV, «entra no palco de qualquer maneira», acrescenta.
Nada é como era, com excepção daquele estabelecimento. Ali impera a tradição, patente num conjunto de mais de 300 cabeleiras para alugar - de senhores e de vassalos, de santos e de anjos - tratadas pelo mesmo método e com os mesmos instrumentos que eram usados há cem anos, quando a casa foi fundada.
Jerónimo Cardoso Jorge, o fundador, regressou ao Porto após ter visitado a Feira Universal de Paris em 1900, carregado de revistas e entusiasmado com o que tinha visto e aprendido por lá. Em 1906 alugou o edifício da Rua do Bonjardim, instalou a casa de família no primeiro andar e a loja no rés-do-chão, trabalhando como cabeleireiro e fabricante de perucas, capachinhos e bigodes. Chamou os sobrinhos, Manuel e António, para junto de si e, incansável, continuou a viajar por França e Espanha, donde trazia cabelo, e por Portugal e pelo Brasil, angariando clientes.
Morreu em 1920 deixando o negócio nas mãos dos sobrinhos. António desapareceu em 1973 e o irmão em 1988. Sem descendentes directos confiaram a casa a Horácio Teixeira e a Israel Matos, os seus mais leais empregados. Horácio, hoje com 61 anos, começou como aprendiz, aos 10 anos de idade, «depois de ter completado a 4ª classe». Israel foi introduzido na arte por um vizinho, empregado da loja, em 1965, quando tinha 11 anos.
A actividade da casa tem a época alta a partir da Páscoa, coincidindo com as festividades religiosas até Setembro. Nos restantes meses do ano «aguenta-se, há sempre que fazer».
Pergunto a Horácio Teixeira o que acontecerá à loja quando se cansar de exercer a profissão. Responde-me encolhendo os ombros e levantando as sobrancelhas, ao mesmo tempo que afasta os braços com as mãos abertas. Teve «três miúdos aprendizes» que se desinteressaram pela arte. Provavelmente fechará.
Quando lá entrei estava Horácio Teixeira a «fazer a franja», a prender e a alinhar com destreza, num fio esticado, conjuntos de seis a nove cabelos. Para formar uma cabeleira são precisas 2000 fiadas destas, que podem demorar três dias a concluir. Trabalha com cabelo natural, matéria-prima que já foi mais fácil de encontrar. «Hoje os cabelos usam-se curtos; para serem trabalhados têm que ter no mínimo vinte centímetros de comprimento», diz-me.
A actividade já teve melhores dias, «no tempo em que os actores do Sá da Bandeira vestiam a rigor». «Hoje, um actor», mesmo que vá representar o papel de Luís XV, «entra no palco de qualquer maneira», acrescenta.
Nada é como era, com excepção daquele estabelecimento. Ali impera a tradição, patente num conjunto de mais de 300 cabeleiras para alugar - de senhores e de vassalos, de santos e de anjos - tratadas pelo mesmo método e com os mesmos instrumentos que eram usados há cem anos, quando a casa foi fundada.
Jerónimo Cardoso Jorge, o fundador, regressou ao Porto após ter visitado a Feira Universal de Paris em 1900, carregado de revistas e entusiasmado com o que tinha visto e aprendido por lá. Em 1906 alugou o edifício da Rua do Bonjardim, instalou a casa de família no primeiro andar e a loja no rés-do-chão, trabalhando como cabeleireiro e fabricante de perucas, capachinhos e bigodes. Chamou os sobrinhos, Manuel e António, para junto de si e, incansável, continuou a viajar por França e Espanha, donde trazia cabelo, e por Portugal e pelo Brasil, angariando clientes.
Morreu em 1920 deixando o negócio nas mãos dos sobrinhos. António desapareceu em 1973 e o irmão em 1988. Sem descendentes directos confiaram a casa a Horácio Teixeira e a Israel Matos, os seus mais leais empregados. Horácio, hoje com 61 anos, começou como aprendiz, aos 10 anos de idade, «depois de ter completado a 4ª classe». Israel foi introduzido na arte por um vizinho, empregado da loja, em 1965, quando tinha 11 anos.
A actividade da casa tem a época alta a partir da Páscoa, coincidindo com as festividades religiosas até Setembro. Nos restantes meses do ano «aguenta-se, há sempre que fazer».
Pergunto a Horácio Teixeira o que acontecerá à loja quando se cansar de exercer a profissão. Responde-me encolhendo os ombros e levantando as sobrancelhas, ao mesmo tempo que afasta os braços com as mãos abertas. Teve «três miúdos aprendizes» que se desinteressaram pela arte. Provavelmente fechará.
29 dezembro 2006
28 dezembro 2006
26 dezembro 2006
24 dezembro 2006
Um Pai Natal andaluz
Para o estereótipo ser perfeito faltam-lhe as vestes vermelhas. E ser menos comunicativo também, porque o velhote nórdico apenas solta uns monossílabos ininteligíveis. Gino Barba Iglesia, pelo contrário, é um homem concreto, simpático e conversador, que ri das amarguras da vida. Artista plástico itinerante, retratista de rua por estes dias a residir no Porto, acedeu amavelmente partilhar o desejo de Boas Festas aos visitantes que comigo fazem A Cidade Surpreendente.
23 dezembro 2006
Longa vida à Livraria Fernando Machado
Há dias, quando cultivava o meu vício de passear de máquina fotográfica, desta vez na tentativa de conseguir uma fotografia das pobres iluminações natalícias da Baixa, tive uma agradável surpresa. A Livraria Fernando Machado, apareceu-me, no meio da noite, reluzente, como nova, bem destacada da escuridão por uma luz esplêndida.
Lembrei-me então da notícia de O Tripeiro, na edição deste mês, sobre a Fernando Machado, anunciando que a livraria estava de regresso aos Clérigos, mais bonita e mais funcional, portas abertas a todos, com música em fundo que convida à permanência, disposta a retomar o seu lugar na cultura portuense.
O que vale, ainda segundo O Tripeiro, é que as livrarias, ao contrário dos homens morrem mas podem ressuscitar.
Longa vida, então, à Livraria Fernando Machado!
Lembrei-me então da notícia de O Tripeiro, na edição deste mês, sobre a Fernando Machado, anunciando que a livraria estava de regresso aos Clérigos, mais bonita e mais funcional, portas abertas a todos, com música em fundo que convida à permanência, disposta a retomar o seu lugar na cultura portuense.
O que vale, ainda segundo O Tripeiro, é que as livrarias, ao contrário dos homens morrem mas podem ressuscitar.
Longa vida, então, à Livraria Fernando Machado!
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