05 abril 2006

Agenda

O corta!
festival internacional de curtas metragens do porto 2006

O corta! festival internacional de curtas metragens do porto 2006 define-se como o pulsar de algo que cresce e se multiplica. De cada edição anterior surgem novas ramificações que se desenvolvem e tocam na ideia seguinte.
É assim que o corta! se prepara para a sua quarta explosão de criatividade, entre 18 e 20 de Maio no Auditório da Biblioteca Almeida Garrett.



O corta! é o único projecto de festival para o formato da curta metragem com sede no Porto. A sua integração na vida cultural da cidade ultrapassa claramente a mera apresentação de uma competição de filmes. Nos últimos dois anos foram muitas as escolas que participaram em eventos do corta! e muitos os alunos de audiovisuais, música, cenografia e representação que colaboraram e trabalharam com o festival.

Este ano haverá uma retrospectiva de David Cangardel, um dos realizadores favoritos do festival, uma mostra de curtas metragens da Lituânia, a exibição de filmes de escolas, workshops, uma exposição de instalações multisuporte interactivas, a produção de uma curta metragem num ambiente controlado - ao vivo e com acesso directo do público - e muito mais... O programa está aqui e o festival é gratuito.



Os Dias da Criação

A Incomunidade e a Casa da Eira Longa organizam Os Dias da Criação, a 13 e 14 de Maio de 2006 em Vilar, Boticas, Trás-os-Montes. A intenção é promover o conhecimento não telesabido, não intermediado por outdoors e outros folhetos que só é possível no estar ao vivo. Os organizadores apelam à presença diversificada de criadores galegos e transmontanos, nas distintas árias da criação: audiovisual, escrita, performance, música, pintura, fotografia, pensamento, artesanato e escultura. Apesar de se tratar de um encontro de âmbito regional, garantem que não haverá qualquer segregação relativamente à presença de criadores que fisicamente tenham nascido noutras paragens.

29 março 2006

O Majestic

...um café da Belle Époque que podia entrar no mapa das cafetarias d'A Ideia da Europa, de George Steiner.











Agenda

Zona de Perda - Livro de Albas

A editora Objecto Cardíaco, criada recentemente por Valter Hugo Mãe em Vila do Conde, lançará o livro «Zona de Perda - Livro de Albas», de Pedro Sena-Lino, na próxima Sexta-Feira, às 19h30, no Palácio Galveias, ao Campo Pequeno, em Lisboa.

Pedro Sena-Lino é autor de cinco livros de poesia: «Constelação dos Antípodas» (2000); «as flores do son» (2002); «o ilimite verde - malcata - sete geografias» (2003); «biofagia» (2003); «deste lado da morte ninguém responde» (2005); e três de ensaio: «Natércia Freire» (2000); «Só a viagem responde - sobre Maria da Graça Freire» (2003); «Um promontório na sede» (no prelo).

Está representado em várias antologias em Portugal: «Anos 90 e Agora: uma antologia da nova poesia portuguesa» (2004); «Algarve: Todo o Mar» (2005); e no estrangeiro: «Neuf Poètes Portugais d'Aujourd'hui», Universidade de Montpellier (2005) e «Poesia Viva», Croácia, Mutants, (2005).

Pedro Sena-Lino é também crítico de poesia, colaborando no suplemento Mil Folhas, do jornal Público.


O Irmão dos Mabecos

Quem pôs alguma vez os pés em África fica com ela no corpo... sente-lhe o
sangue e a extrema solidão povoada de memórias... África, onde a memória pode ser memória de futuro...


A Livraria Almedina anuncia a apresentação do livro «O Irmão dos Mabecos», da autoria de Carlos Mota, com a publicação da editora Papiro. O evento realizar-se-á no dia 31 de Março, às 21h30, na Almedina do Arrábida Shopping.
Carlos Mota publicou, «António Sérgio, Pedagogo e Político» (Cadernos do Caos, Porto, 2000); «Breve História da Educação no Ocidente» (Cadernos do Caos, Porto, 2003); «20 Contos de Euros Macutas e Outras Quinhentas», com Paulo Silva (Cadernos do Caos, Porto, 2004) e «O Coronel» (Crónicas),(Ausência, V.N.Gaia, 2005).


A Ideia da Europa

A Europa é feita de cafetarias, de cafés. Estes vão da cafetaria preferida de Pessoa, em Lisboa, aos cafés de Odessa frequentados pelos gangsters de Isaac Babel. Vão dos cafés de Copenhaga, onde Kierkegaard passava nos seus passeios concentrados, aos balcões de Palermo. [...] Desenhe-se o mapa das cafetarias e obter-se-á um dos marcadores essenciais da ideia de Europa.
George Steiner



Ainda na Livraria Almedina, no Arrábida Shopping, mas a 1 de Abril, às 21h30, terá lugar o colóquio de Relações Internacionais «A Ideia da Europa», com a presença dos professores doutores Fernando de Sousa, Milan Rados e José Pedro Teixeira Fernandes.

Sem desprimor para com os outros professores convidados para o colóquio, eu que fui aluno de Milan Rados, devo dizer que vale a pena ouvi-lo.
Milan Rados nasceu na Bósnia-Herzegovina. Obteve a Licenciatura em língua Servo-Croata e Literatura Jugoslava na cidade de Belgrado.
Iniciou a sua actividade profissional como jornalista, tendo desempenhado essa função em diversos órgãos de comunicação social da ex-Jugoslávia. Em 1997, publicou o dicionário Servo-croata - Português, Português - Servo-croata.
Em 1999, deu à estampa o livro «Quem Matou a Jugoslávia?», e, mais
recentemente, «A Política Externa da União Europeia».
Doutorado em Ciência Política e Relações Internacionais pela Universidade
do Minho, é professor universitário especialista em Estudos Europeus e
Política Externa.

22 março 2006

A Outra Face da Cidade Surpreendente

Bata para entrar n'A Outra Face da Cidade Surpreendente

Não raras vezes me têm perguntado se o Porto é, ou não, tal como tem sido mostrado neste blogue. Se respondesse com o velho ditado que diz «quem o feio ama, bonito lhe parece», como já me foi sugerido, mentiria, não por a cidade me desgostar, mas porque ela é realmente interessante, bonita e surpreendente.

A cidade de granito, a que foi sendo construída até à primeira metade do século XX, adaptando-se pacientemente ao relevo físico da parte final do vale do Douro, constitui um conjunto urbano admirável. É essa parte do Porto que tem sido mostrada aqui, ignorando, de algum modo, a desertificação que a urbe tem conhecido de há trinta anos para cá.

O declínio, contudo, não lhe tem beliscado a respeitabilidade. A dignidade da decadência da cidade de granito está representada naquele pobre batente sem serventia, que resiste à passagem do tempo na porta de uma casa abandonada e que assinala, aqui, a entrada para algo que devia a mim próprio há algum tempo, a abordagem fotográfica à outra face da cidade surpreendente.

16 março 2006

Vai no Batalha



A expressão popular portuense «vai no Batalha» - que significa «não acredito» - poderia servir de divisa à saga por que passou aquela sala de espectáculos, da fundação ao encerramento no Verão de 2000.

Nesse ano, o Cinema Batalha tinha uma média de dois ou três espectadores por sessão. A administradora da empresa Neves & Pascaud, proprietária do imóvel, queixava-se, então, das receitas que não davam «nem para pagar a luz», e lembrava que a última enchente tinha acontecido dois anos antes com o Titanic. Um momento que talvez tenha sido doloroso para Margarida Neves, cuja família detém uma longa tradição na exibição cinematográfica no Porto.



O seu avô, Manuel da Silva Neves, associado a Edmond Pascaud, fundou a primeira sala de cinema do Porto, o High Life, na actual Rotunda da Boavista. Era um barracão com o chão de terra batida que veio substituir as exibições de cinema ambulante pelas sessões regulares. Dois meses depois o High Life mudou de local, para a Cordoaria, e em 1908 transferiu-se para a Praça da Batalha, com a designação de Novo Salão High Life.



1913 foi um ano grande para a Neves e Pascaud. Abriu o Salão Jardim da Trindade e baptizou o High Life com o nome de Cinema Batalha, ambos instalados em edifícios concebidos para a exibição cinematográfica. Quatro décadas depois, em 1947, António Neves, filho do fundador, inauguraria o moderníssimo Batalha, produto da imaginação do arquitecto Artur Andrade.



Um interessante grafismo, assinado por Péres, na capa de um pequeno programa, com a inscrição Cine Batalha, o mais antigo do Porto. Telefone 1407.
No interior anunciavam-se, entre outos, filmes da Paramount - As Cruzadas, de Cecil B. de Mille, A Noiva que Volta, com Claudette Colbert - e da Castello Lopes - O Mistério do Subterrâneo, com John Wayne. «Para breve», prometia-se, «a vedeta de palmo e meio Shirley Temple, na sua grande criação A Princezinha da Rua, um filme delicioso, com uma efabulação cheia de pitoresco». Tudo a «preços de Verão» entre 1$00, na 2ª plateia, e 3$00, no balcão.

Modernidade que causaria alguns engulhos. O então presidente da Câmara do Porto, um tal Luís de Pina, revelou-se contra a insolência artística do edifício, considerando-a provocadora dos bons costumes. Vai daí, mandou tapar um mural decorativo, pintado no interior do cinema por Júlio Pomar, e retirar as iniciais CB dos puxadores das portas, que o adepto da ditadura olhava como indiciadoras de um Comité Bolchevista.



De então para cá o Batalha viveu tempos áureos, até o lento declínio o ter levado ao encerramento.



Alguns meses depois do fecho, com a Capital Europeia da Cultura à porta, foram anunciadas obras de reabilitação, para que o Batalha integrasse as programações da Porto 2001 e do Fantasporto. Outros projectos se seguiram sem que a situação do edifício mudasse.



Este mês, finalmente, o Batalha reabriu de cara lavada, com um espectáculo musical e a promessa de uma «grande festa» de inauguração em Abril. Aguardemos, para ver e crer que desta vez o sopro de vida naquele espaço... não «vai no Batalha».

08 março 2006

Da Urbe e do Burgo - IV

Regressamos às crónicas de Sant'Anna Dionísio respigando excertos de um conjunto de comentários da actualidade de então, publicados com o título Perspectivas do Douro. Repare-se no matiz da escrita, na visão tão particular do autor e na sua preocupação com o futuro da urbe. Futuro que, tanto para o centro histórico do Porto como para aquilo que S.D. designava como «interland rústico» da cidade, se revelou desastroso. No centro a ruína permanente, na periferia o caos urbanístico.
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Perspectivas do Douro

«Rara será a cidade, seja qual for o continente em que for procurada, que possa apresentar tão impressionantes flancos, tão propícios à realização de uma grandiosa obra de urbanismo, arquitectónico e paisagístico, como esta oferecida à imaginação de qualquer bom observador, desde o promontório de Nova Sintra até às proximidades da Foz.



Logo de começo, é o formidando duplo barranco compreendido entre as duas ciclópicas pontes metálicas, lançadas com grande arrojo sobre o rio nos fins do terceiro quartel do século passado. O sítio é único no mundo. Numa extensão de mil metros, o rio corre entre duas colossais ravinas, quase perpendiculares, de trinta braças de fundo.



Do lado do sul, é o despenhadeiro da serra do Pilar - irrisória como serra, mas ciclópica como paredão de um canal carrancudo e disforme. Do lado do norte é o fraguedo, cortado quase a prumo, que vai desde a ravina dos Guindais ao barranco do antigo Seminário».


(...)
«Tanto ou mais do que a cidade de Lisboa, a cidade do Porto, em pleno e anárquico crescimento, está a pedir, em silêncio, há mais de meio século, uma obra de aglutinação municipal imprescindível e, no fim de contas, extremamente simples. Queremos referir-nos à necessidade de ser convertido num só município, devidamente disciplinado e controlado, que abrangeria os actuais âmbitos urbanizantes do Porto, Matosinhos, Maia, Condomar, Valongo, Gaia. Assim se poderia traçar e orientar um grande e decisivo plano de expansão, arrumação, circulação e embelezamento que não existe e cuja falta prolongada além dos limites razoáveis tem, já hoje, como consequência funesta (em muitos sectores e casos, de dificílima correcção) a estratificação de erros sobre erros, que já nos meados do século XVIII eram objecto do lucidíssimo olhar do Almada, Velho (D. João de Almada), na impressiva e discreta missiva-relatório endereçada ao Marquês de Pombal, seu parente.

Como é possível, com efeito, que o núcleo periférico de Leixões não tenha sido considerado, administrativamente, desde a criação do porto artificial do Porto, como um bairro da própria cidade que determinou a sua construção?
E como compreender que o aglomerado contíguo e fronteiro de Vila Nova de Gaia (uma vez extinta a longínqua motivação da alforria medieva) não esteja ainda hoje incluído no círculo de urbanização da Cidade de que ela, a vila, é um patente e simples bairro?
São anomalias que não se entendem».


(...)
«Francisco de Holanda, arquitecto, esteta e pintor, há já cinco séculos, a propósito das deficiências que notava na cidade de Lisboa ao chegar ao estuário do Tejo com os olhos ainda cheios do encanto da dignidade arquitectónica das cidades italianas, consagrou algumas reflexões a esse assunto, sugerindo algumas ideias e obras capazes de preencher esses vazios.

Sem querermos cair em mimetismos, sempre antipáticos e merecedores de mofa, entendemos que não será descabido tentar solicitar a atenção - como se costuma dizer: "de quem de direito" - para a urgência de se estudar a fundo alguns graves "senãos" da velha cidade do estuário do Douro no sentido de se fazer dela algo digno do que, nos dois séculos anteriores, nela se realizou no plano de autêntica urbanização e valorização panorâmica.
A cidade, tal qual está e tende a expandir-se, parece querer fugir ao rio donde nasceu e esquecer o empolgante cenário que lhe imprime o seu mais genuíno perfil.

Está bem que o casario moderno, funcional ou não funcional, se dilate na direcção do antigo interland rústico da Areosa, da Asprela, de Francos, mas que não se perca de vista o eixo fundamental da grandiosa linha de alcantis sobranceiros ao rio. Essa é e deverá ser sempre a alma da cidade e, como tal, requer que os seus mais dedicados urbanizadores lhe consagrem os preciosos momentos de imaginação criadora».
(...)
«A cidade nascida do grandioso rio tem de lhe ser fiel, modelando-lhe os flancos e tornando-os ainda mais impressivos. Pois que é "urbanizar" senão adquirir ainda mais fisionomia, sem prejuízo da fisionomia fundamental já adquirida?».

01 março 2006

O Imperial

Um monumental café dos anos quarenta, restaurado e adaptado a novos usos pela McDonald's.











22 fevereiro 2006

No Mercado Ferreira Borges

Há edifícios com sorte, como este.



Construído, entre 1885 e 1888, para substituir o Mercado da Ribeira, viu o seu destino alterado alguns anos depois.
Serviu de garagem, de cozinha dos pobres, esteve para ser museu, foi estufa e escapou por pouco ao destino do Palácio de Cristal, o camartelo. Foi mercado de frutas e depois abandonaram-no.



Em 1983 a Câmara fez o que devia, recuperou-o. Hoje presta bons ofícios como espaço «multi-usos», da cultura a eventos comerciais.



É pequeno, se o virmos pela bitola da actual mania das grandezas, mas tem uma escala humana. É leve, luminoso e arejado.
Foi inovador, quando nasceu, pelo emprego de novos materiais, o vidro e o aço.



Está decorado com motivos vegetais, combinados com ornatos animalistas.
Outra particularidade, as colunas, que servem de suporte da cobertura, funcionam no interior como condutas de águas pluviais, que posteriormente são encaminhadas para o rio.



Depois de tudo isto, digam lá se não é justo que, o Mercado Ferreira Borges, faça parte do imaginário do centro histórico portuense.

15 fevereiro 2006

Da Urbe e do Burgo - III

«No velho mundo, será difícil encontrar uma urbe tão singular, no ponto de vista somático como anímico. Sem risco de exagero, pode reputar-se uma das mais típicas, não diremos só da Ibéria, mas da Europa». A afirmação, que ilustra o apego que Sant'Anna Dionísio tinha pelo Porto, está patente no prefácio de Da Urbe e do Burgo.



Este afecto terá levado o autor, homem cosmopolita, a criticar o imobilismo então reinante, e a avançar com sugestões concretas para o progresso da cidade. Uma das suas propostas, a união dos concelhos à volta do Porto num único município, revelou-se premonitória, estando hoje na ordem do dia da actualidade política.



Outra, que o autor já havia explanado no volume IV do Guia de Portugal, da Gulbenkian, revestia-se de um certo carácter desenvolvimentista, próprio da época em que um Plano Director - o de Robert Auzelle, de 1962 - propôs a demolição de uma boa parte do centro histórico do Porto. Sant'Anna Dionísio não iria tão longe, mas a sua proposta de «construção de um viaduto, em granito, de seis ou sete tramos, e de quinze a vinte metros de largura de tabuleiro, que se lançasse entre o Largo da Cividade (ou da Sé) e o terreiro da Relação», não deixaria de ser considerada hoje, no mínimo, como insensata.

A ideia, no entanto, era tão cara ao pensador e cronista, que chegou a levá-la ao conhecimento do Presidente do Município, esperando que pudesse merecer-lhe algum estudo. Respondeu-lhe um «subordinado do Magistrado Supremo da Edilidade» que, num «breve bilhete-ofício», fez saber que a obra não teria qualquer «viabilidade de execução, pois o seu custo absorveria, por si só, uma verba aproximadamente equivalente ao orçamento total do Município».

O conceito do viaduto não seria, contudo, abandonado pelo escritor, que o fez ressurgir na capa do livro onde reúne cinquenta e uma crónicas por si escritas para o Primeiro de Janeiro, nos anos sessenta, através de uma ilustração de outro portuense ilustre, o pintor Carlos Carneiro, filho de António Carneiro cuja Casa-Oficina vale a pena visitar.

08 fevereiro 2006

Anoitecer nos Leões







(Insinuação de RPS, o blogamigo do Fado Falado)

Adenda
Em maré de insinuações, mais duas - uma do Teófilo e outra minha: há dois blogues novíssimos, para ver, sobre o Porto, A Esquina e o não sei pra mais.

25 janeiro 2006

Da Urbe e do Burgo - II

A nova muralha do Porto

O atributo «nova», para classificar a muralha mandada edificar por D. Afonso IV, distingue-a da antiga e pequena muralha, apelidada de sueva, que hoje se sabe ter sido levantada durante a ocupação romana da península, nos séculos III ou IV d.C.
Da velha muralha existe uma torre no morro da Sé, actualmente decorada com um sinal de trânsito e dois contentores de lixo verdes, cor da ecologia mas também da esperança. Adiante. É da cerca nova do Porto, longa de três quilómetros, que nos fala o excerto da crónica de Sant'Anna Dionísio, publicada nos anos 60, que escolhi para enquadrar a fotografia da muralha popularmente conhecida como fernandina. Muralha que, como vimos abaixo, foi mandada demolir pelo Almada pai, no século XVIII.
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«Ao sair da Idade Média, o Porto, tendo rompido a exígua carapaça do chamado muro velho (ou muro "suevo") , acomoda-se mais à vontade e com mais segurança dentro do muro novo, que, à custa de duro trabalho dos moradores e alguns decerto dos arredores, se erguera, em menos de meio século, desde o recôncavo de Miragaia ao despenhadeiro dos Guindais.

Essa importante obra de defesa deve ter sido determinada pelo risco que os Portuenses correram, em 1336, no começo do reinado de D. Afonso IV, quando uma aguerrida hoste de uns 1 300 galegos e castelhanos, capitaneados por um vassalo de Afonso IX de Castela, D. Fernando de Castro, invadiu o Entre Douro e Minho e veio até às cercanias do burgo. Em presença do perigo, o bispo, D. Vasco Martins, juntou a gente que pôde e, com a ajuda do arcebispo de Braga, D. Gonçalo Pereira (o avô de Nun'Alvares), e do grão-mestre da Ordem de Cristo, D. Estêvão Gonçalves, atacou os invasores e desbaratou-os na passagem do rio Leça.



Nesse mesmo ano se deu começo à construção da nova muralha do Porto, estando a cidade escarmentada com o risco que correra, pois inúmeras casas, por falta de espaço dentro do morro da Sé, haviam sido construídas fora da muralha velha.

De resto, desde D. Dinis, verificava-se, em Portugal, de norte a sul, intensa actividade de prevenção. Por toda a parte se construíam muralhas e couraças. Vila Real, Chaves, Vinhais, Bragança, Trancoso, Pinhel, Sabugal cercavam-se de possantes torres e barbacãs. Eram as obras de toda a gente. No canseiroso formigueiro que as fazia surgir do chão misturavam-se homens de todas as condições: rústicos, vilões, mesteirais e até clérigos. Cada "vizinho" e cada pulso contribuía com um "canto".

Quem prestar atenção ao que ainda resta desses muros (infelizmente convertidos,quase todos, em pedreiras maninhas, nos séculos XVIII e XIX), não poderá deixar de ficar impressionado com a grandeza de tantas obras realizadas por um país que contava, se tanto, um milhão de habitantes.

A muralha nova do Porto, ao fim de quarenta anos de trabalho anónimo, estava concluída. Reinava então o Inconstante, já a braços com a desastrosa contenda com o Trastâmara. O burgo expansivo e forte podia dormir com mais sossego, tendo as portas bem trancadas de noite.

O muro apresentava uma altura média de três braças, de espessura uma braça, mais de meia légua de perímetro (uns 3400 metros), cinco portas defendidas por torres, sete postigos e duas dezenas de cubelos.
(Interrogue-se hoje algum mestre-de-obras, pausado e entendido, e pergunte-se em quanto poderia importar uma obra dessas, em boa cantaria de granito, bem travada e aparelhada -, não se esquecendo de o informar, à puridade, que os penedos, nesse tempo, eram cortados a guilho e o transporte dos grandes rebos se fazia em poderosas forquilhas ou «zorras» de carvalho lusitano...)

A relativa prosperidade que o burgo fruía (graças ao comércio com os países do Norte, nesse tempo mais necessitados ainda do que hoje do que só o solo e o sol dos meridionais lhes poderia levar: o vinho, as frutas e o sal), não deve ter sido alheia a essa obra realizada em tão reduzido tempo.»

Sant'Anna Dionísio

18 janeiro 2006

A Imagem da Cidade



Contemplar cidades pode ser especialmente agradável, por mais vulgar que o panorama possa ser. Tal como uma obra arquitectónica, a cidade é uma construção no espaço, mas uma construção em grande escala, algo apenas perceptível no decurso de longos períodos de tempo. O design de uma cidade é, assim, uma arte temporal, mas raramente pode usar as sequências controladas e limitadas de outras artes temporais como, por exemplo, a música. Em ocasiões diferentes e para pessoas diferentes, as sequências são invertidas, interrompidas, abandonadas, anuladas. Isto acontece a todo o passo.

A cada instante existe mais do que a vista alcança, mais do que o ouvido pode ouvir, uma composição ou um cenário à espera de ser analisado. Nada se conhece em si próprio, mas em relação ao seu meio ambiente, à cadeia precedente de acontecimentos, à recordação de experiências passadas. (...) Todo o cidadão possui numerosas relações com algumas partes da sua cidade e a sua imagem está impregnada de memórias e significações.



Os elementos móveis de uma cidade, especialmente as pessoas e as suas actividades, são tão importantes como as suas partes físicas e imóveis. Não somos apenas observadores deste espectáculo, mas sim uma parte activa dele, participando com os outros num mesmo palco. Na maior parte das vezes, a nossa percepção da cidade não é íntegra, mas sim bastante parcial, fragmentária, envolvida noutras referências. Quase todos os sentidos estão envolvidos e a imagem é o composto resultante de todos eles.



A cidade não é apenas um objecto perceptível (e talvez apreciado) por milhões de pessoas das mais variadas classes sociais e pelos mais variados tipos de personalidades, mas é o produto de muitos construtores que constantemente modificam a estrutura por razões particulares. Se, por um lado, podem manter-se as linhas gerais exteriores, por outro há uma constante mudança no pormenor. Apenas parcialmente é possível controlar o seu crescimento e a sua forma. Não existe um resultado final, mas somente uma contínua sucessão de fases. Assim, não podemos admirar-nos pelo facto de a arte de dar forma às cidades, visando um prazer estético, estar bastante distante da arquitectura, da música ou da literatura. Pode aproveitar delas grandes contributos, mas não pode imitá-las.

Kevin Lynch
in A Imagem da Cidade, Edições 70

11 janeiro 2006

Da Urbe e do Burgo - I

Da Urbe e do Burgo é o título de uma colectânea de crónicas de Sant'Anna Dionísio, publicadas inicialmente entre 1960 e 1970, no jornal O Primeiro de Janeiro, que a Lello & Irmão editou em 1971.

A Cidade Surpreendente, propõe-se reproduzir aqui alguns excertos dessas crónicas do distinto pensador, que tão bem conhecia e tanto amava o Porto, e ilustrá-los, na medida do possível, com imagens fotográficas.
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Os Dois Almadas

«Durante muito tempo se supôs que a cidade do Porto devia a sua profunda transfiguração, operada na segunda metade do século XVIII, à acção reformadora do desembargador Francisco de Almada (o suposto orientador e promotor de "todas" as grandes obras de urbanização modernizante levadas a efeito na periferia do velho burgo) , varão falecido em 1804, e que, depois de um longo hiato de esquecimento - em boa parte explicável pelos dois períodos consecutivos de infortúnios das invasões francesas e da guerra civil - seria objecto de exaltadas evocações ao efectuar-se, em 1879, por iniciativa do Município, a trasladação das suas cinzas para o Prado do Repouso, então inaugurado, onde hoje se encontram, num mausoléu, sobrepujado por um busto lavrado pelo cinzel de Soares dos Reis.



Esta persuasão era tão forte que, quando se deu esse nome de "Almada" à rua que hoje ainda assim se designa, ambígua e injustamente se visava, como é sabido, a evocação da figura do desembargador e urbanizador "pombalino" (sic), desaparecido pouco antes da primeira invasão napoleónica.
No entanto, já há meio século, na sua obra Portuenses Ilustres, Sampaio Bruno entendeu, e com razão, que essa atribuição das maiores transformações do Porto ao afamado Francisco de Almada era bastante indevida, acentuando que o "grande Almada" não era o desembargador falecido em 1804, mas sim o pai, o regedor de armas governador da província de Entre Douro e Minho, parente e homem de confiança do marquês de Pombal, falecido em idade avançada, em 1786, na cidade do Porto, onde teria exercido longa influência como governador da cidade, administrador do erário e inspector das obras de interesse público.

Na realidade, o reparo de Bruno plenamente se justifica se se prestar um pouco de atenção às datas das principais obras de transfiguração que, no Porto, se realizaram na segunda metade do século dezoito.

Antes de tudo, importa ter presente que, ainda na primeira metade desse século, a cidade era circundada pela chamada muralha fernandina, com as respectivas torres, portas e postigos, que a cingiam, num perímetro de cerca de três quilómetros.Fora desse cinto, era o "arrabalde".

Pelas gravuras que nos ficaram dessa época se vê claramente a fisionomia singular da cidade, comprimida entre essa poderosa cerca medieva que, de um lado, subia pelos alcantilados fraguedos dos Guindais, e, do outro, pela encosta íngreme de Miragaia, notando-se ao longo do rio um alto muro marginal com a grande Porta da Ribeira junto da confluência do chamado rio da Vila e, de um lado e outro, um certo número de arcadas e postigos.

Assim a contemplou e desenhou o pintor Baldi, secretário de Cosme de Médicis, na sua passagem pela cidade, em 1670. E, como ele, outros.

A demolição dessa cinta robusta que, ainda em pleno Século das Luzes imprimia um cunho tão acentuadamente pitoresco e arcaico ao casario moreno do Porto, seria o grande golpe transfigurador do velho burgo.

Ora esse golpe, em boa parte, foi vibrado por João de Almada, o pai, e não por Francisco de Almada, o filho. Foi aquele quem mandou demolir a grandiosa Porta da Ribeira (1774) para poder concluir a audaciosa obra de urbanização e higiene que ai realizou: a cobertura do velho e pestilento "rio da Vila", que assim se converteu em colector axial da cidade moderna, e sobre cuja abóbada se lançou o íngreme pavimento da Rua de S. João, também da sua iniciativa. Foi ele quem deitou por terra o "postigo do sol", convertendo-o na monumental Porta do Sol (por sua vez demolida, uns oitenta anos depois, por uma edilidade ignorante). Foi ele, decerto, ainda quem mandou apear a Porta do Olival, que fazia face à Cordoaria, porta enorme flanqueada por duas torres, situada, talvez, onde hoje está a Cadeia da Relação. O edifício filipino havia ruído. João de Almada mandou levantá-lo de novo, servindo-se, por certo, em boa parte da «enorme pedreira» que (para os seus olhos) era a muralha.

A própria Torre dos Clérigos (concluída em 1763 que o poeta Teixeira de Pascoaes, num súbito espirro de bom humor, definiu, num livro seu, como «o Porto espremido para cima», não deixou de receber com certeza muita cantaria da velha muralha. Pedras que teriam visto passar o séquito de D. João I com sua noiva, D. Filipa de Lencastre, teriam sido guindadas aos inverosímeis andaimes, depois de aparelhadas e lavradas, sob o olhar atento de Nasoni, transformando-se em empoleirados pináculos, balaústres e cornijas vizinhas das nuvens...

Assim poderemos parafrasear o Poeta dizendo que a torre, se não é o Porto espremido para cima, é, pelo menos, "in partibus", a sua velha muralha medieva posta a pique.»
(...)

Sant'Anna Dionísio

04 janeiro 2006

Feudo-tirou

Num dos frequentes levantamentos dos burgueses portuenses, ocorridos ao longo de séculos contra o domínio episcopal, alguns delegados régios mandaram saquear e derrubar as casas de alguns cónegos partidários do bispo. Questão de poderes. No trono estava então D. Sancho I, rei de Portugal... e dos Algarves que viria a perder. A este interessava reduzir o domínio do bispado do Porto, pertencente a Martinho Rodrigues, um bispo de má catadura, uma vez que tinha contra ele a maioria dos membros do cabido da Sé.



O povo... associou-se aos tumultos arrombando as portas das igrejas e introduzindo no interior os excomungados. Segundo Sampaio Bruno, que nos conta esta história no I tomo do seu interessante Portuenses Ilustres, dado à estampa em 1907, esta situação durou cinco longos meses, com «o bispo encerrado no palácio episcopal, em tão estreito assédio que nem sequer lhe consentiram entrasse um sacerdote, a confessá-lo, numa enfermidade que lhe sobreveio.»

Martinho Rodrigues acabaria por fugir o que levou o poder real a confiscar os seus avultados bens e os da mitra. Chegado a Roma «em tal estado de miséria que movia à compaixão», pôs o Papa ao corrente dos seus padecimentos. Perante tal desmanda, Inocêncio III apressou-se a dirigir cartas ao bispo e arcediago de Zamora e ao abade beneditino de Mosconela, «nas quais lhes dava comissão para compelirem Sancho I a reparar os danos praticados e a dar satisfação das injúrias feitas ao prelado.» Mandou igualmente que «fulminassem a excomunhão contra os oficiais do rei, instrumentos da perseguição, e especialmente contra dois burgueses, que parece haverem sido os chefes do levantamento popular.»



Um desses burgueses era João Alvo, e o seu companheiro um tal Pedro, que ficou conhecido pela alcunha popular de «Feudo-tirou». Os restantes burgueses portuenses que tinham lutado pelos seus foros, acabaram abandonados pelo rei poeta e ferozmente perseguidos pelo poder episcopal.

Sobre os vencidos destes tumultos, sentenciou Alexandre Herculano, ainda segundo Bruno:« (...) os seus inimigos, conservando os documentos do triunfo obtido, transmitiram-nos involuntariamente a memória desses homens enérgicos, e os nomes de João Alvo e Pedro «Feudo-tirou» (...) podemos hoje estampá-los nas páginas da história, o grande e indestrutível livro da linhagem popular.»

O fim do feudo, que Pedro acabou por não tirar, seria negociado dois séculos mais tarde, a 13 de Abril de 1406, por D. João I, conforme relatou Germano Silva numa crónica recentemente publicada no Jornal de Notícias, em que apela para a comemoração dos 600 anos de autonomia administrativa do Porto.