27 junho 2005

S. João no Porto - entre a realidade e a ficção

Hélder Pacheco, em recentes entrevistas dadas a propósito do lançamento de «O Livro do S. João», de que é autor, diz-nos que a referência escrita mais remota às festas de S. João no Porto é de Fernão Lopes, na Crónica de D. João I. Aquele historiador das tradições da cidade, refere ainda Almeida Garrett que, no início do século XIX, terá aludido aos festejos são-joaninos em três pontos da cidade: na Lapa, no Bonfim e em Cedofeita. Nostálgico, Hélder Pacheco recorda o apogeu dos festejos nos anos cinquenta e sessenta com as festas de bairro e as multidões que então afluíam à baixa.



Hoje o ponto alto das festas são-joaninas é na Ribeira com dois fogos de artifício. Um da margem direita e outro da margem esquerda. Perguntar-me-ão, «dois fogos, não podia ser só um?». Sim, podia ser só um, mas o fogo, sendo de artifício - tal como a divisão político-administrativa entre o Porto e Gaia - não tem em conta a realidade demográfica da região.

A propósito de fogos festivos e das suas envolventes, deixo aqui um excerto de um hilariante conto de Manuel Jorge Marmelo, retirado da colectânea Porto Ficção, publicada pelas Edições ASA em 2001, intitulado precisamente:



Fogo de Artifício

O senhor presidente da Câmara tinha garantido oitocentas e trinta e seis rebentações de pólvora sobre as águas turvas do Douro, em pirotecnia tradicional, e mais trezentas e vinte e sete explosões de fogo-de-artifício japonês, oferta especial à cidade, tudo acompanhado por vários milhares de decibéis de música épica e jogos de holofotes comandados por um computador inteligentíssimo, instalado do lado de lá do Douro.





Quando o último rojão se desfez no céu, as bocas do povo amontoado nas margens, ao longo de vários quilómetros, permaneciam escancaradas, tardando igualmente em dissipar-se dos olhos arregalados os reflexos das derradeiras fulgurações luminosas. Foi um foguetório lindo, que muitos garantiam ter sido o mais impressionante que a cidade alguma vez havia visto, e ninguém se espantará que a nenhum dos presentes tenha ocorrido a ideia de contar cada uma das rebentações dos petardos. Mesmo, porém, na remota possibilidade de alguém o ter feito, o mais certo é que ao minucioso espectador - algum invejoso da oposição! - tivesse escapado o estrondo que excedeu as mil cento e sessenta e três em que assentava a promessa do imponente edil, o qual há um ano e treze dias se debatia com o magno problema político do fogo-de-artifício e com a necessidade de provar ao mundo que os gajos do Porto são perfeitamente capazes de organizar escorreitamente um arraial popular.



Não fosse, contudo, o sucedido nos primeiros minutos do ano 2000 - e a paródia nacional em que se transformou o «reveillon» falhado dos tripeiros - e o líder da autarquia não se teria dado ao trabalho de confirmar cada um dos rebentamentos. Todavia, o estoiro supranumerário não deflagrou imediatamente no científico espírito do engenheiro uma centelha de estranheza que fosse, atribuindo-o antes a um gesto de cordialidade da empresa contratada para oficiar a romaria. Mil cento e sessenta e três ou mil cento e sessenta e quatro foguetes - que diferença fazia uma explosão a mais ou a menos? O que importava é que em duas semanas o Porto e as gentes no Norte mostraram ao mundo, com três formidáveis espectáculos de luz e cor - no «reveillon» 2001, na festa de Reis, ressuscitada por força do notável falhanço de 2000, e na abertura oficial da capital da cultura - que as más línguas melhor fariam se guardassem respeito ao invicto burgo. Ora tomem lá disto!





O edil fechou os olhos, acabou de bater as palmas com que se assinalou o fim da festa e desenhou nos lábios um sorriso à medida das circunstâncias, satisfeito e altivo, para lançar em redor e assim pôr no devido sítio os vários ministros e demais lisboetas que, às dezenas, tinham subido da capital com a secreta esperança de assistir ao vivo a mais um dos já proverbiais tropeções do orgulho tripeiro. Mas fosse porque o presidente do conselho de administração de uma empresa privada sustentada por fundos públicos se atreveu a dizer que

- Agora só era preciso que o vosso metro se fizesse enquanto o diabo faz estourar um foguete

ou por outro motivo qualquer, o certo é que o sorriso do autarca não durou muito tempo. Desvaneceu-se num pum! e deu lugar a um esgar de espanto, de terror até. O presidente do conselho de administração da empresa privada sustentada por fundos públicos temeu que fosse sua a culpa do sucedido - há piadas que devem ser guardadas para melhor altura e já houve casos de ministros demitidos por coisas assim. A causa do fim do sorriso era outra, porém, até porque o edil não chegou a ouvir o gracejo até ao fim; no instante mesmo em que era dito, um diligente assessor da presidência da Câmara agarrara o engenheiro pelo braço e, entre dentes, murmurou-lhe a única coisa que, para além de um interruptor defeituoso que fizesse colapsar o espectáculo, lhe podia ter estragado a fruição do triunfo:
- Senhor presidente, lamento ter de lhe dizer isto, mas está um corpo a boiar no rio.
(...)

Manuel Jorge Marmelo

22 comentários:

Anónimo disse...

Carlos,

Belo trabalho, parabéns.

Vera Diana

Pedro Estácio disse...

Carlos, que dizer destas imagens! Fazem roer de inveja quem não esteve lá ;) (Felizmente não é o meu caso hehehe!!!)

FANTÁSTICAS!!!

e BIBA O S.JOÃO ...

Pedro Estácio disse...

Carlos,

Tens toda a razão! Não me referi ao texto, mas dei umas boas risadas. É 5*. D)
O problema é que as tuas fotos enchem sempre o olho de uma maneira! ;)

Espero que tenhas apreciado o "Verdes Anos" :)

Anónimo disse...

É caso para perguntar: "Onde está Wally?".
Mas a sério: belas fotografias e belo texto.

Anónimo disse...

Passei aqui 500 vezes ao fim da tarde para ver se ja estava...

F
A
N
T
A
B
U
L
A
S
T
I
C
A
S
!
!
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jÁ ALGUMA VEZ TE TINHA DITO?
As fotos do maralhal são concerteza as que me prendem mais.
E este ano não fui ao S. João...

=)

disse...

Eu tb fui daqueles que passei aqui várias vezes durante o dia... mas finalmente cá estão as imagens a testemunhar aquilo que eu tb vi ao vivo, foi uma noite fantástica... e a provar isso mesmo estão as excelentes fotos!abraços ZPL

A. disse...

Este ano não deu para ir ao S. João, mas agora estou toda contente porque vi ainda melhor pelas tuas imagens :)
Beijos e parabéns como sempre.
Ana

Poor disse...

imagens envolventes por um lado, e quase assustadoras por outro!!Quando estamos no meio da multidão não nos damos contas do impressionante que é!Muito bom o texto a acompanhar também, mas como alguém já disse a imagem é que prende mais!:)
Por falar em imagens, tenho lá umas da concorrências a precisar de comentário de expert!;)

Anónimo disse...

Esse Manuel Jorge é cá um marmelo, hi! hi! hi!
Filipe

Miguel de Terceleiros disse...

Já fiquei triste por não ter estado cá no S. João, mas as tuas fotos encheram-me os olhos e alma!

Anónimo disse...

Estou desde ontem a olhar todas estas fotos, e ainda não consegui dizer nada... estou como na noite, a ver o fogo, de olhar arregalado e sorriso pateta! E não há nada que alegre mais os meus olhos de criança!
Concluindo: Estão simplesmente magníficas, e estou sem palavras!

P.S. Com um lugar cativo desses, bem que podias ter convidado!! :(
Para o ano, vou ver o fogo no meio do rio!

Anónimo disse...

Ó Carlos, os barquinhos que lá estavam, não eram todos do foguetório... ;)

Este ano foi em cima da hora, e sem $, mas para o ano, vou ver o fogo num daqueles barquitos bunitus que recebem pessoas a bordo, a troco de uns euros (já me tinha informado, e se for sem jantar, não fica assim muito caro)...Acho que vale a pena, pelo menos uma vez, ver o fogo no meio do rio...E se eu tivesse uma máquina e o teu talento, era de lá que mostrava ao mundo, o fogo pelos meus olhos! ;)

Beijokas*, e mais uma vez obrigada pelos teus "olhares"!

Freddy disse...

Vim aqui parar através da Máquina de Café e como é a minha cidade, verdadeiramente amei as fotos...
Continua q é fantástico poder mostrar um pouco mais desta nossa terra inacreditável...
Ainda hoje estava ao pé do farol na Foz e lembrei-me do teu blog.

Grande abraço e tens link na Zona Franca!

M.J.Marmelo disse...

Só para informar que esse tal Marmelo também é blogger, com muito gosto, há dois anos, um mês e vinte dias.
E que, sendo frequentador deste blog, também gosta das fotografias que cá vão sendo postas.
Um abraço

Unknown disse...

Eich, Carlos! Finalmente arranjei tempo para fazer uma passagem por esta cidade surpreendente! Mas que belas fotos! Formidáveis! E sempre, com muita LUZ, p/ mostrar toda a claridade da Cidade Invicta! Este ano, foi melhor que nunca, a avaliar pelas fotos, pelos foguetes e pelo comentário. ... é o sr presidente a trabalhar para as autárquicas, LOL.
Parabéns, como sempre!
Um forte abraço,

lobices disse...

...é sempre um prazer visitar o teu blog e ver as tuas excelentes fotos (ou não fossem elas sobre a nossa amada cidade...)
...estas do maralhal do S. João, estão fabulosas...
...parabéns
abraço

Rogério Santos disse...

Parabéns pelas imagens. Estão espectaculares.

scelta disse...

Ver as fotos e ler este texto foi um regalo para os meus olhos!
Já tive oportunidade de viver a noite de S.João mas disseram-me que esta foi das melhores, não só pelo fogo mas também pela nostalgia de ser a última vez que se iria ver a ponte assim tão iluminada... E por isso não posso esconder a pontinha de inveja que estou a sentir no momento que escrevo este comentário :(

Pedro Santos Cardoso disse...

Tens aqui um excelente blog!

Anónimo disse...

Ai as saudades da minha cidade...
Fotografias lindas, os meus parabens.

ZGarcia disse...

É um bom post !

Anónimo disse...

Excelente trabalho jornalistico.
Assim se prova que os blogues são muito mais do que simples cadernos de pessoais apontamentos.
Excelente! Mais uma vez.