25 agosto 2005

Arquitectura do Rabelo

A Arquitectura do Rabelo é o título de um estudo do prof. arquitecto Octávio Lixa Filgueiras, que serviu como roteiro para um filme documentário produzido por José Monteiro e realizado por Vítor Bilhete. Este documentário correspondeu talvez à última oportunidade de fixar imagens para o futuro, de uma tradição hoje perdida: a construção de um barco rabelo por um dos últimos mestres calafates do rio, já desaparecido, com alguns artífices que com os mestres trabalharam.

O processo decorreu em absoluto respeito pelo método nórdico de carpintaria naval, ou seja a formação do casco antes da montagem das cavernas. Sem máquinas, apenas com o esforço humano, e sem moldes, as formas foram obtidas a partir de medidas básicas tradicionais, o gosto do artista e a prática de muitas gerações.

As filmagens decorreram entre Junho e Agosto de 1991 em vídeo e em película de 35mm. Infelizmente não houve suporte financeiro para a montagem da versão cinematográfica, que se mantém em negativo.
A versão DVD pode ser adquirida na Sinalvídeo, a quem pertencem os direitos das fotografias aqui exibidas, por correio electrónico para: correio@sinalvideo.pt .

Comecemos então pela apresentação dos «artistas-artesãos-figurantes» como lhes chamou Lixa Filgueiras, autor do guião aqui adaptado livremente.



0 mestre Arnaldo Pereira, então com 80 anos, natural de Avintes, construtor de barcos valboeiros utilizados na pesca e transporte no troço final do rio Douro;

Júlio Pereira, natural de Avintes, era o mais novo, com 59 anos, filho do grande construtor Alfredo Francisco, irmão do mestre Arnaldo e de profissão carpinteiro de valboeiros e barcos de pá;

Manuel Monteiro, nascido em Bitetos, então com 71 anos, filho de João Rouquinho, célebre arrais do Vinho do Porto, e ele próprio marinheiro de barcos rabelos e barquinhas;

Miguel da Silva, de Santiago, Melres, tinha 62 anos; antigo marinheiro e pescador do rio, além de carpinteirar foi o cozinheiro deste grupo;

Arnaldo Vieira, da praia da Areja, com 60 anos, arrais de rabões, barqueiro e pescador do rio funcionou como ajudante do mestre.



O local escolhido para a construção do barco foi o areio da Lomba, a poucos quilómetros do Porto, devido à importância do trabalho se realizar num espaço aberto e amplo, permitindo o acerto a olho do apuramento das formas do casco e a fruição da própria vida do rio.

Geralmente não havia estaleiros fixos. Os barcos construíam-se nas praias junto às povoações dos clientes que se entendiam com os mestres acordando as condições: o tipo e o tamanho do barco medido em pipas; à jorna ou por ajuste de preço; com ou sem fornecimento de materiais ou de comida.



Se o mestre era de fora e trazia alguns ajudantes, montavam uma barraca onde se instalavam. A comida era cozinhada no próprio local da obra.



Contratada a obra por ajuste de preço, o mestre Arnaldo escolheu as árvores que lhe convinham para a madeira necessária.



Inicia-se a construção do rabelo pelo fundo chato - o sagro, estrado lenticular alongado constituído por número impar de pranchões de 4 cm de espessura. As tábuas pregam umas às outras, de encosto, de modo a que o fundo seja autêntico fundo de prato, ao contrário do dos barcos do troço final do rio, cujos fundos são de tábua trincada.

Passada uma corda a meio do estrado donde sairá o sagro, marcam-se os terços - na verdade uma divisão em quatro partes iguais - e nessas marcas estabelecem-se as larguras simetricamente, com a ajuda de um compasso ou dum sarrafo.



Estas marcações e o contorno do sagro são feitas com a linha batida. A linha é embebida em água e impregnada com pó de cortiça queimada, permitindo a marcação directa. É de salientar a perícia com que o mestre consegue realizar alinhamentos curvos por este processo.



Depois de serrado o contorno do sagro e feito um primeiro solinhado - corte oblíquo no rebordo exterior - pregam-se as travessas que o mantêm solidário.



Começam então a cravar as estacas do picadeiro. 0 picadeiro é formado por uma série de estacas cravadas no chão e acertadas em altura de modo a que o sagro apresente o perfil desejado.



0 sagro acaba por ser transportado para cima do picadeiro. Em caso de necessidade usavam-se pedras ou sacos de areia para o sujeitar ao perfil definido pelas estacas.



Segue-se o traçado - batendo a linha -,feitura e montagem das oucas, as peças de reforço interior, da proa e da popa. A sua colocação nas extremidades do sagro obriga a várias verificações: as alturas são tomadas nos extremos do sagro, para as linhas estendidas dos terços aos extremos dos bicos; o acerto a olho e de longe do perfil do conjunto do sagro mais oucas, ou seja o próprio perfil do barco; o alinhamento e acerto no plano vertical, a partir da linha estendida de proa à popa, de onde se tiram os prumos. Assim, as oucas ficam mantidas na devida posição, com as estacas sustidas por pernas.



0 sagro, consolidado com travessas de reforço provisórias, vai começar a ser urdido. Urdir o barco é vesti-lo com o tabuado dos costados. As primeiras tábuas são as biqueiras, uma a cada bordo - peças triangulares a formar o rodo, à proa, abraçam a ouca pelo exterior e terminam no terço de vante.
Repare-se no ajuste das tábuas que têm que ficar empenadas, tomando a forma com a ajuda de paus que funcionam como alavancas.



A própria configuração da parte superior das biqueiras é acertada no sítio, batendo-se a linha.
As biqueiras sobrepõem-se ao solinho - corte oblíquo no rebordo exterior - do sagro e são por sua vez solinhadas para receberem a primeira fiada corrida, também chamada primeiro solinho. 0 primeiro solinho é constituído por três peças a cada borda.
Monta-se a primeira à proa, segue-se a de ré e finaliza-se com a do meio, que remata o conjunto.



As fiadas corridas - o primeiro solinho, o segundo solinho e as corridas - não são inteiriças. As peças que as constituem ficam ligadas por uniões de escarva lavada contrafiadas para dar mais segurança aos costados.
É sempre o mesmo sistema: tábua a um bordo, tábua a outro, borda trincada, emendas com uniões de escarva, acerto à linha do bordo superior de cada fiada, solinhados, etc.



A última fiada, a faísca, não é completa, porque a curva da boca em perfil permite que vá de fora a fora.



Urdido o barco, isto é, modelado o casco e mantida a sua forma por estacas exteriores e travessas interiores, passa-se à operação seguinte: a de acavernar.



Obviamente tem de marcar-se primeiro a localização das cavernas. Parear o sagro chama-se à divisão do sagro em partes iguais, feita através do seu eixo longitudinal e correspondente ao espaçamento das cavernas. A primeira fiada de pipas nelas assenta directamente.
Compreende-se por isso a importância desta fase. Dela depende a boa arrumação da carga, a própria lotação do barco. Daí a palavra rumo, que corresponde ao comprimento de uma pipa medida. De facto ao disporem-se as pipas longitudinalmente, tampo contra tampo, cada uma deve assentar em duas cavernas sucessivas, sobrando para cada lado o espaço de um quarto de pipa igual a meio casal, sendo o casal o espaço entre cavernas correspondente a meia pipa. Este era o sistema tradicional dos barcos grandes que podiam transportar oitenta pipas em quatro camadas.



Não há paus que as façam inteiras, às cavernas. Nos barcos antigos, uma pernada em L, a caverna mestra, era completada com o pegão, unido de aparo e cintado com arco de pipa. Daí o assentamento alternando os pegões a uma e outra borda do barco. Como vemos neste caso a construção foi-se aligeirando; cada caverna tem um pegão a cada lado o que torna mais frágil a estrutura. 0 acerto das cavernas e pegões é feito directamente no casco.



Após a colocação destes reforços transversais interiores passam a tratar dos reforços de bordadura, ou seja das guarnições. A borda é cintada por fora com os verdugos, terminados à proa e à ré pelos curvatões, e no interior com as dragas. Muitas vezes usavam o fogo para encurvar estas pecas.



Interiormente as dragas inteiriças, ficam sujeitas às estameiras - cavernas especiais mais altas e reforçadas - e são presas solidariamente aos verdugos por meio de tornos de madeira, feitos no local.
Os tornos saem de pedaços de carvalho, cortados a machado e afeiçoados a enxó. Introduzidos nos orifícios, abertos com o trado de fora a fora, isto é abarcando os verdugos, as cavernas e a própria draga. Apertados a malho, ficam travados com as cunhas, nos extremos mais afilados, cravadas de fora para dentro.



0 coqueiro - o coberto à ré - depois de pronto sobrepõe-se parcialmente a um estrado - a chileira de ré - onde a tripulação dormia e cujo espaço interior constituía a despensa de bordo, e por isso era tapada à frente.



Enquanto no barco se acaba a chileira de ré, cá fora tratam de afeiçoar a chumaceira - um cepo de freixo ou sobreiro - onde trabalhará a espadela - o remo de governo do barco. Acabada essa peça, ela é montada de encaixe na popa, sobre a ouca.



Observa-se igualmente a pré-montagem dos escamões, os pilares das apègadas - a plataforma elevada de acesso à espadela - e a preparação da carlinga, onde entrará, na respectiva pia, o pé do mastro.



E já se começa a preparar a praia para tombar o barco. Este é aliviado de todas as peças móveis. A operação de tombar é feita com a ajuda de bois que vão accionar as jangadas de polés de duas rodas. Os cabos destas polés são passados do barco, isto é das dragas, para uma estacada aonde se orde o aparelho de forca.



A operação de tombar é muito delicada pois exige uma boa coordenação do esforço das juntas de bois.



0 barco vai apinando, enquanto os carpinteiros esperam o momento de lhe enfisgar os pranchões, mal ele abata um pouco, depois de ter atingido o ponto cimeiro da viragem. Depois regula-se-lhe a inclinação, cavando a terra sob os apoios, que por fim assentarão em soleiras.



Procede-se à tosa do costado, batendo a linha ao longo das fiadas. Reprega-se tudo por fora, ficando as pontas dos pregos reviradas. O sagro é preso às cavernas com cavilhas de ferro. Tudo isto é feito ao longo do casco, trepando os carpinteiros em banquetas ou madeiros, pendurados como andaimes.



Para a calafetagem, preparam a estopa em rolos, que depois vai ser metida nas juntas com os ferros - os grafetos - accionados por meio de macêtas. Quando o casco não é novo, usam latinhas com água para limpar os restos do calafete anterior.



Depois de calafetado, o casco será embreado com pez louro, a que se adiciona um pouco de gordura de carneiro para correr melhor. Esta mistura é aquecida em panelas de ferro de três pés, e aplicada com escopeiros - uma espécie de pincéis feitos com pele de carneiro. Procede-se à embreagem pelo exterior e posteriormente por dentro do barco, o que vai exigir nova operação - o botar abaixo.



Nada de gado, unicamente gente a botar abaixo: os que pegam aos cabos das polés das jangadas para lascar o barco e os que, de lombos aos costados, amortecem o peso e o andamento da bisarma. Para botar abaixo usam uma escora que serve de alavanca, empurrando a parte média da borda livre do barco, conforme vai sendo accionada por um aparelho de força, que a desloca em direcção ao casco. Para muitos, o botar abaixo constitui espectáculo mais lindo do que o tombar.



Já com o barco no chão, procedem à calafetagem e embreagem por dentro, posto o que, o lançam à água de imediato.

No lançamento à água era costume enfeitar a proa com festões de papel ou ramos de flores e a popa com ramos de oliveira. Também se usava que o arrais obsequiasse o mestre carpinteiro e os seus auxiliares com uma oferta de vinho, o que constituía uma prova de apreço, em que se comiam as azeitonas e as bolachas que completavam o festão colocado à proa. Depois da festa, voltava-se de novo ao trabalho.



0 barco no rio, e continuam as andanças. Estamos agora nas montagens definitivas. Põem-se de novo os escamões - dois e não três a cada lado, porque se trata de uma barquinha rabela e não de um rabelo. Os escamões vão enfisgar por entre as dragas e o casco, e ficam contraventados pelas travessas de dentro e pelas travessas de fora, estas encimadas pelas pèjadeiras.
Sobre as pèjadeiras apoiam-se as apègadas, isto é, o próprio estrado onde se manobra a espadela. Entremeado de capas para se firmarem os pés dos pèjadores, estruturam-no o travessão da frente e a cal, esta tendo por baixo a tábua do pão.



Por esta altura, deitadas abaixo as árvores convenientes e transportadas para a praia, vão tratar do amanho da espadela - o remo de governo. Compõe-se este de três partes principais: a emenda apontando para a frente as ganchas da mão; a haste que remata atrás no paíl; e o quiço, assentando na mesa que serve de apoio e de base alargada, com o furo para o tornel - o eixo de rotação.



Ao lado vão formando a vela quadrada, debruada pela relinga.



Entretanto a verga, que suporta a vela, e o mastro já se encontram prontos e a espadela ocupa o seu lugar sobre a chumaceira. Ao porem à prova a espadela vão determinar o acerto definitivo da altura das apègadas.

A obra chegou ao fim. Resta ver a armação do barco.



Para não fugir à frente, puxada pela vela, sujeitam a verga ao mastro com as troças e respectivas polés. A vela, de pano cru, tem um reforço de cercadura -a relinga e é amarrada à verga com os invergues.
Os cabos de manobra da vela, incluem as escotas - ou cotas deitadas às dragas; os arrincabens de abrir a vela; e para bracear, presos aos punhos da verga, os braços.
Finalmente, o espiadoiro da vela é um pequeno aparelho que iça a vela a meio, de modo a permitir que se mantenha livre a vista para a proa, para poder governar.



Quando o barco novo se preparava para trilhar a senda do seu destino, o que tinha pela frente era uma vida de trabalho, de canseiras e de perigos...

Hoje que os novos meios de transporte acabaram com esta embarcação tradicional, o uso que dela fazem é de cartaz das casas de Vinho do Porto.

Amarrados do lado de Gaia, recordam aos turistas uma das mais épicas histórias do rio Douro. Mas durante um dia de festa - o de S. João - a cidade vive de novo a emoção do grande espectáculo das regatas dos rabelos, uma forma talvez um tanto artificial, mas defensável, de guardar uma das suas memórias mais queridas.

17 agosto 2005

Há Festa na Aldeia



Uma voz mais uma trompete, duas violas, um acordeão e um violino. Cinco instrumentos acústicos nas mãos de músicos populares experientes fazem a festa, tocando modinhas antigas no adro da igreja desenhada no ar da noite quente.



O local? Penha Longa no Marco de Canaveses, uma freguesia talhada em socalcos, como todo o vale do Douro, na margem direita do rio que banha a cidade surpreendente.

12 agosto 2005

No Molhe - 2



Numa placa mal conseguida, colocada há alguns anos no Molhe, pode ler-se: «Em meados do século XIX era já funcional este porto de abrigo, o porto de Carreiros, para facilitar o desembarque de passageiros, correio e bagagens a partir de navios fundeados ao largo quando a vasante (sic) na barra do Douro não dava entrada».

Isto é, o Molhe foi construído como paliativo porque não era a solução definitiva para o problema da barra. Essa viria mais tarde com a abertura do Porto de Leixões e o consequente abandono do Porto do Douro.

Houve, entretanto, outras soluções para amolecer a entrada do rio, como o aterro do Passeio Alegre, onde assenta o actual jardim, e o paredão em cuja extremidade está o Farol de Felgueiras.



O Molhe, que cumpriu a sua missão de cais e deu nome a uma rua e a um lugar, ficou para o presente como uma fenda de terra no mar, um agradável miradouro que nos permite observar com algum recolhimento a praia e o casario da Foz.



Com um pouco de imaginação é até possível olhá-lo como um enorme e pesado batelão orientado para o Atlântico Sul, a navegar, a navegar...

08 agosto 2005

No Mercado do Bolhão



A doença do Mercado do Bolhão estava diagnosticada há muito e só por falta de vontade não se lhe aplicou o tratamento adequado. Agora, com porta da Rua Formosa fechada e a ala Sul evacuada, deitam-se as mãos à cabeça e improvisam-se obras que garantam a segurança de pessoas e bens. Obras que, está prometido, durarão quinze dias.



Apesar disto o velho mercado, reduto da identidade tripeira, resiste.
Do meio dos comerciantes de frutas, apertados nas escadas, uma voz enérgica sobressai: «É para uma revista? Diga lá que o mercado está aberto!!!».



Está aberto e recomenda-se, apesar da nota de desânimo patente no rosto dos comerciantes. A avaliar pelo movimento no Sábado de manhã, o vaivém de clientes é constante.



Com alguns dos pequenos restaurantes a funcionar em pleno, havia de tudo à venda.



Até peixe, apesar de o local tradicional das peixeiras, que se pelavam por besuntar políticos precisados de banhos de multidões, estar vazio. Só os talhos estão fechados.



Não resisto a deixar aqui uma sugestão: experimente meter-se no metro, sair à porta do Bolhão e fazer lá as compras. Eu assim fiz e não me arrependi. E depois... até a rua de Sá da Bandeira está tão aprazível nesta altura do ano, com árvores, flores e a luz reflectida pelos passeios claros de calcário e basalto...

04 agosto 2005

Não é neblina, é fumo!



Assim foi hoje de manhã. Enquanto uma voz sorridente anunciava na rádio «bom tempo», eu tinha diante de mim indícios de um cenário dantesco: toda a cidade do Porto coberta pelo fumo proveniente dos fogos florestais que devoravam aquilo que resta dos bosques do distrito mais incendiário de Portugal.

Continuamos, Verão após Verão, a provocar alegremente o fogo nas matas por todo o país. A tragédia é anunciada pela manhã com o eufémico «bom tempo» e é-nos servida como grande espectáculo pelas televisões ao entardecer.

Miserável esta terra que se deixa arder e a ficar a ver.

15 julho 2005

Trippa alla maniera di Oporto

«Quanto è ampia, la realtà?
Quanto misura il mio mondo?»
E o que é que isto tem a ver com as tripas à moda do Porto?
Tem tudo a ver, segundo Effe, um italiano que se define como «un panificatore heideggeriano, immobile compulsivo de difficile equilibrio», mas que no fundo é um artesão de afectos na blogosfera.

Afectos que n'A Cidade Surpreendente vão mais longe, ampliando a medida do meu mundo com outras afeições penduradas na imensa rede virtual: pelo Abrupto, cujas amáveis referências concederam a este blogue uma visibilidade absolutamente inesperada; pela Cecília B. devido à garra e à densidade da sua escrita; pelo Cantamanyanes, um catalão que se exprime em português; por todos aqueles que têm chegado à Cidade por correio electrónico, vindos da Rússia, do Canadá, dos Estados Unidos, do Brasil, de Macau e doutros locais da diáspora portuguesa; e por todos os outros daqui ao pé da porta, que me dispenso de enumerar porque são da casa, cujos importantes estímulos têm contribuído para a continuidade deste blogue.

É tempo de repousar. A Cidade Surpreendente vai a banhos; regressará retemperada para o convívio no final da primeira semana de Agosto.

12 julho 2005

O Porto em pedra escura



...
Porto da minha infância!
A primeira impressão que me causaste
Tenho-a, cheia de espanto, na memória,
Cheia de bruma e de granito!
É uma impressão de Inverno,
Sombra cinzenta, enorme, donde irrompe
Alto cipreste empedernido
No meio de sepulcros habitados.
...
Teixeira de Pascoaes

11 julho 2005

Dois olhares



1 - O simpático carneiro do Passeio Alegre, que Luísa Dacosta diz ter-se agaiado e perdido do rebanho na Praia das Pastoras e ter ficado para sempre a pular em cima do Chalé Suisso.



2 - O pôr-do-sol na Avenida de Montevideu.

08 julho 2005

Dois ceramistas plastificados



Houve dois industriais de cerâmica chamados Francisco da Rocha Soares, o pai, regressado do Brasil com avultados capitais e herdeiro da Fábrica de Miragaia, e o filho, um activo empresário que desenvolveu e dirigiu várias fábricas de cerâmica no Porto. Rocha Soares Filho criou ainda uma rede de entrepostos comerciais em Lisboa, em Setúbal, no Funchal e em Luanda. Idealista, deitaria tudo a perder ao envolver-se nas lutas entre liberais e absolutistas, como militante activo da causa liberal. É portanto justa a homenagem do município ao evocar este nome naquela rua - apesar do lamentável desaparecimento do belo e evocativo topónimo Cordoaria Velha.

Lamentável é também a recente febre normativa - como se o Porto fosse a Disneylândia - das placas toponímicas da cidade, cuja expressão máxima se encontra aqui: o nome dos industriais de cerâmica, inscrito em azulejos, ocultado por uma placa de... plástico.

30 junho 2005

A Noite do Porto



Shakespeare podia ter vivido aqui. Podia
ter dançado na noite de S. João, quando o rio
transborda para as ruas nas correntes
humanas que as inundam. Podia ter escrito
nos invernos de ausência o que a noite
ensina sobre a privação. Podia ter
ensinado, à beira do cais, que o tempo lascivo
corre como a água, levando o que não há-de
voltar e trazendo o que nunca terá nome
nem corpo. As almas, que empalidecem quando
o sol poente se reflecte nos vidros,
cantam bruscamente o verão: reflexo de um
reflexo, frutos que se deixam colher pela
memória, seres sem ser que não hão-de voltar
a nascer: Mas o que ele cantou, podia
tê-lo cantado aqui. Todos os lugares são,
afinal, lugar nenhum para quem não habita
senão a própria voz: sonho de outra margem,
cantor perdido no labirinto das pontes. Perto
da foz, sem o saber; sonhando a nascente,
como se não fosse ele próprio a única fonte.

Nuno Júdice

29 junho 2005

Esplanada



Naquele tempo falavas muito de perfeição,
da prosa dos versos irregulares
onde cantam os sentimentos irregulares.
Envelhecemos todos, tu, eu e a discussão,

agora lês saramagos & coisas assim
e eu já não fico a ouvir-te como antigamente
olhando as tuas pernas que subiam lentamente
até um sítio escuro dentro de mim.

O café agora é um banco, tu professora de liceu;
Bob Dylan encheu-se de dinheiro, o Che morreu.
Agora as tuas pernas são coisas úteis, andantes,
e não caminhos por andar como dantes.

Manuel António Pina

27 junho 2005

S. João no Porto - entre a realidade e a ficção

Hélder Pacheco, em recentes entrevistas dadas a propósito do lançamento de «O Livro do S. João», de que é autor, diz-nos que a referência escrita mais remota às festas de S. João no Porto é de Fernão Lopes, na Crónica de D. João I. Aquele historiador das tradições da cidade, refere ainda Almeida Garrett que, no início do século XIX, terá aludido aos festejos são-joaninos em três pontos da cidade: na Lapa, no Bonfim e em Cedofeita. Nostálgico, Hélder Pacheco recorda o apogeu dos festejos nos anos cinquenta e sessenta com as festas de bairro e as multidões que então afluíam à baixa.



Hoje o ponto alto das festas são-joaninas é na Ribeira com dois fogos de artifício. Um da margem direita e outro da margem esquerda. Perguntar-me-ão, «dois fogos, não podia ser só um?». Sim, podia ser só um, mas o fogo, sendo de artifício - tal como a divisão político-administrativa entre o Porto e Gaia - não tem em conta a realidade demográfica da região.

A propósito de fogos festivos e das suas envolventes, deixo aqui um excerto de um hilariante conto de Manuel Jorge Marmelo, retirado da colectânea Porto Ficção, publicada pelas Edições ASA em 2001, intitulado precisamente:



Fogo de Artifício

O senhor presidente da Câmara tinha garantido oitocentas e trinta e seis rebentações de pólvora sobre as águas turvas do Douro, em pirotecnia tradicional, e mais trezentas e vinte e sete explosões de fogo-de-artifício japonês, oferta especial à cidade, tudo acompanhado por vários milhares de decibéis de música épica e jogos de holofotes comandados por um computador inteligentíssimo, instalado do lado de lá do Douro.





Quando o último rojão se desfez no céu, as bocas do povo amontoado nas margens, ao longo de vários quilómetros, permaneciam escancaradas, tardando igualmente em dissipar-se dos olhos arregalados os reflexos das derradeiras fulgurações luminosas. Foi um foguetório lindo, que muitos garantiam ter sido o mais impressionante que a cidade alguma vez havia visto, e ninguém se espantará que a nenhum dos presentes tenha ocorrido a ideia de contar cada uma das rebentações dos petardos. Mesmo, porém, na remota possibilidade de alguém o ter feito, o mais certo é que ao minucioso espectador - algum invejoso da oposição! - tivesse escapado o estrondo que excedeu as mil cento e sessenta e três em que assentava a promessa do imponente edil, o qual há um ano e treze dias se debatia com o magno problema político do fogo-de-artifício e com a necessidade de provar ao mundo que os gajos do Porto são perfeitamente capazes de organizar escorreitamente um arraial popular.



Não fosse, contudo, o sucedido nos primeiros minutos do ano 2000 - e a paródia nacional em que se transformou o «reveillon» falhado dos tripeiros - e o líder da autarquia não se teria dado ao trabalho de confirmar cada um dos rebentamentos. Todavia, o estoiro supranumerário não deflagrou imediatamente no científico espírito do engenheiro uma centelha de estranheza que fosse, atribuindo-o antes a um gesto de cordialidade da empresa contratada para oficiar a romaria. Mil cento e sessenta e três ou mil cento e sessenta e quatro foguetes - que diferença fazia uma explosão a mais ou a menos? O que importava é que em duas semanas o Porto e as gentes no Norte mostraram ao mundo, com três formidáveis espectáculos de luz e cor - no «reveillon» 2001, na festa de Reis, ressuscitada por força do notável falhanço de 2000, e na abertura oficial da capital da cultura - que as más línguas melhor fariam se guardassem respeito ao invicto burgo. Ora tomem lá disto!





O edil fechou os olhos, acabou de bater as palmas com que se assinalou o fim da festa e desenhou nos lábios um sorriso à medida das circunstâncias, satisfeito e altivo, para lançar em redor e assim pôr no devido sítio os vários ministros e demais lisboetas que, às dezenas, tinham subido da capital com a secreta esperança de assistir ao vivo a mais um dos já proverbiais tropeções do orgulho tripeiro. Mas fosse porque o presidente do conselho de administração de uma empresa privada sustentada por fundos públicos se atreveu a dizer que

- Agora só era preciso que o vosso metro se fizesse enquanto o diabo faz estourar um foguete

ou por outro motivo qualquer, o certo é que o sorriso do autarca não durou muito tempo. Desvaneceu-se num pum! e deu lugar a um esgar de espanto, de terror até. O presidente do conselho de administração da empresa privada sustentada por fundos públicos temeu que fosse sua a culpa do sucedido - há piadas que devem ser guardadas para melhor altura e já houve casos de ministros demitidos por coisas assim. A causa do fim do sorriso era outra, porém, até porque o edil não chegou a ouvir o gracejo até ao fim; no instante mesmo em que era dito, um diligente assessor da presidência da Câmara agarrara o engenheiro pelo braço e, entre dentes, murmurou-lhe a única coisa que, para além de um interruptor defeituoso que fizesse colapsar o espectáculo, lhe podia ter estragado a fruição do triunfo:
- Senhor presidente, lamento ter de lhe dizer isto, mas está um corpo a boiar no rio.
(...)

Manuel Jorge Marmelo

23 junho 2005

Próxima actualização da Cidade Surpreendente: 27 de Junho ao fim da tarde, com fotografias da grande noite tripeira.

22 junho 2005

A não perder



Os tradicionais barcos rabelos, que durante séculos transportaram rio abaixo tudo o que o Alto Douro produzia, fruirão de um sopro de vida na regata que partirá da Afurada para a Ponte Luís I, às 13h00 do dia de S. João. Uma oportunidade única para apreciar estas elegantes embarcações, de velas soltas ao vento, a deslizar lentamente sobre as águas do Douro.



Aqui, na Cidade Surpreendente, abordarei em breve "A Arquitectura do Rabelo", título de um estudo do arquitecto Octávio Lixa Filgueiras que serviu como roteiro para um filme documentário, do qual publicarei algumas imagens e textos.

20 junho 2005

Já cheira a S. João

Noite de Sexta-Feira passada em Lordelo do Ouro



Pela parte que me cabe nunca chamarei churros às farturas apesar de o vocábulo castelhano ter já entrado no léxico português com essa acepção. Até aqui, churro, na língua de Camões, significava apenas sórdido, sujo, imundo, longe portanto do conceito das doces e douradas farturas.
E no lugar de churraria, não estaria, antes de se terem mudado os tempos e as vontades, qualquer coisa como Cristina das Farturas?



Deixemo-nos de coisas menores. O importante é que a Primavera, revelada pelo Equinócio de Março, está em pleno declínio e o Solstício de Verão está aí fogoso, à porta, com o dia mais longo do ano a anunciar a grande festa tripeira, a noite de S. João.

17 junho 2005

No Muro dos Bacalhoeiros





Olhando as casas de cores quentes, estreitas e altas, com janelas amplas e varandas extensas, voltadas para o rio.

15 junho 2005

Augusto Gomes e Eugénio de Andrade

No catálogo referido abaixo, da exposição retrospectiva da obra de Augusto Gomes, encontrei dois elementos que relacionam as duas figuras da cultura portuguesa aqui evocadas, por razões diferentes, anteontem: um poema de Eugénio de Andrade e um retrato do poeta executado pelo pintor matosinhense.
Lá está também uma reprodução monocromática do quadro que serviu de mote a José João Brito, para elaborar a escultura de homenagem aos pescadores de Matosinhos.


Retrato do poeta Eugénio de Andrade - 1953
tinta da china-papel - 29,8cm x 19,7cm - colecção [em 1978] do poeta Eugénio de Andrade



Imagem e louvor de Augusto Gomes

Ele pinta lentamente uma luz supliciada,
porque tudo é amor e ama-se lentamente;
aqui e ali sublinha uma pálpebra, uns lábios,
e os olhos procuram o coração dos homens.

Nas suas mãos, raparigas passam despenteadas,
passa um pescador de rosto azul,
passa outra vez setembro, uma criança ainda,
e o mar irrompe de sombra em sombra,
porque tudo é amor, amor difícil, turvo,
lutando por ser diáfano em suas mãos.

Com alegria, descobre a cor da liberdade,
dos barcos, da juventude, e logo esquece.
Volta. Recomeça. Amorosamente
encontra um corpo - um corpo ? -
uma coluna de espanto e recomeça.

Escreve agora na terra um nome inocente,
cinco sílabas brancas, todas elas maduras,
e confia melancólico um segredo
à luz de cinza que se desprende da noite.

Eugénio de Andrade



Sem título/sem data
Óleo s/ tela - 124cm x 164cm - colecção [em 1978] do Banco Pinto de Magalhães

13 junho 2005

Uma homenagem aos pescadores em Matosinhos

No catálogo da exposição retrospectiva da obra de Augusto Gomes realizada em 1978 no Centro de Arte Contemporânea, então a funcionar no Museu Nacional de Soares dos Reis, aquele pintor é referido como tendo sabido representar a faina e o quotidiano das gentes de Matosinhos, através de uma pintura reveladora do sofrimento da labuta no mar.



Trinta anos após o desaparecimento físico de Augusto Gomes, o escultor José João Brito retomou as personagens do pintor e fê-las renascer, moldando-as em bronze.
O resultado, um generoso grupo escultórico, pode ser admirado em Matosinhos. Está lá tudo: os robustos corpos das mulheres amassados na resistência em terra, o luto nas vestes, a dor nos rostos e o desespero nos punhos cerrados erguidos ao céu.



Difícil é imaginar esta dinâmica de corpos tendo como horizonte o porto de Leixões, encafuada entre um edifício e um bar de praia. Pode ser que um dia alguém lhe dê um lugar mais honroso que sugira a vastidão da beira-mar.

Rua Duque de Palmela 111

Pelo lado dos lódãos ao fim do dia
depressa se chega agora no verão
à pedra viva do silêncio
onde o pólen das palavras se desprende
e dança dança dança até ao rio.

Eugénio de Andrade
1923-2005

09 junho 2005

Reflectindo



No início dos anos noventa veio parar-me às mãos, por empréstimo, um álbum com fotografias do Porto tiradas por um cidadão inglês, fotógrafo amador, na última década do século XIX. Entre os inúmeros originais fotográficos havia uma imagem esplêndida, tirada do miradouro da Vitória, que mostrava todo o vale fronteiro à Sé. A curiosidade levou-me a reproduzir a fotografia e a deslocar-me ao local - o largo socalco onde esteve instalada uma bateria de artilharia durante o Cerco do Porto - para observar as diferenças.
Deparei com um edifício de construção recente, um balneário, que sendo útil para a população residente, constitui uma intervenção infeliz por ter tapado parte da vista do miradouro. Como se isto não fosse suficiente para provocar descontentamento, enfeitaram-no com um conjunto de antenas retransmissoras de uma rede de telefones móveis.
O edifício, como muito outros remodelados no centro histórico do Porto, o tal que é património da humanidade, apresenta na fachada oposta à da fotografia um adiantado estado de degradação. Degradação mais próxima do aviltamento que atinge os objectos de consumo que acabam no lixo, e nestes incluo um grande leque que pode ir do automóvel à embalagem tetrapack, do que da serena e respeitável decadência provocada pela marcha implacável do tempo.

06 junho 2005

2 de 40 Horas Non-stop em Serralves



A assistência ao espectáculo do malabarista Vicent de la Lavenère,



o enquadramento de uma das oficinas para crianças...



... e a provocação: o Karaoke Bouquet. Um tentador estúdio improvisado...



... e o subsequente momento de fama, para os mais ousados, no interior do museu.